quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Características da obra de Machado e Assis (1)

Machado de Assis é o grande romancista brasileiro do século XIX, sua obra assume uma originalidade despreocupada com as modas literárias dominantes de seu tempo. 

A obra machadiana reflete as leituras do escritor, demonstrando estar em sintonia com o espírito da época. Escreve com correção e bom gosto, aproxima a linguagem escrita da falada, expondo modismos. Se, por um lado, os realistas que seguiam Flaubert esqueciam do narrador por detrás da objetividade narrativa, e os naturalistas, à exemplo de Zola, narravam todos os detalhes do enredo, Machado de Assis optou por abster-se de ambos os métodos para cultivar o fragmentário e interferir na narrativa com o objetivo de dialogar com o leitor, comentando seu próprio romance com filosofias, metalinguagens e intertextualidade.

Ou seja, sua narrativa apresenta peculiaridades que denotam a preocupação consciente do escritor com a linguagem. Constantemente, o leitor é convocado a participar da história que revela sua forma ficcional, estabelecendo uma metalinguagem, ou seja, a obra chama atenção para sua ficcionalidade, volta-se para si mesma, na tentativa de se examinar, como a justificativa que se encontra no primeiro capítulo de Dom Casmurro, tentando explicar o título do livro.

As obras de ficção machadianas possuem na maior parte das vezes um humor reflexivo, ora amargo, ora divertido. De fato, uma de suas características mais apreciadas é a ironia, que os estudiosos consideram a "arma mais corrosiva da crítica machadiana". Observa-se essas características na forma como descreve o caráter de suas personagens que, muitas vezes,  é ambígua, permitindo diferentes opiniões. O narrador vai contando a história em meio a ironias e ceticismo, compondo um humor de difícil definição, mas que se revela em desdém contra as convenções humanas, ridicularizando-as, desnudando as hipocrisias mais íntimas, criando tipos imortais.

Nota-se, também em suas obras um processo próximo ao do "impressionismo associativo", há de certo uma ruptura com a narrativa linear, de modo que as ações não seguem um fio lógico ou cronológico, mas que é relatado conforme surgem na memória das personagens ou do narrador. 

De acordo com os acadêmicos também há a constante presença do pessimismo. Suas últimas obras de ficção assumem uma postura desencantada da vida, da sociedade, e do homem. Crê-se que não acreditava em nenhum valor de seu tempo e nem mesmo em algum outro valor e que o importante para ele seria desmascarar o cinismo e a hipocrisia política e social. O capítulo final de Memórias Póstumas de Brás Cubas é exemplo cabal do pessimismo que vigora na fase madura de Machado de Assis e do narrador morto:
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borbas. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. CLX)
A complexidade de sua obra se reflete na caracterização psicológica de suas personagens e no retrato criado para a sociedade da época. A paisagem preferida é a humana, expressa através de sutilezas que dão originalidade ao trabalho. Os temas comuns são: o adultério, o casamento, visto como forma de comércio ou troca de favores, a exploração do homem pelo próprio homem. As mulheres são o ponto forte da criação machadiana. A figura feminina representa mulheres recatadas, sedutoras, adúlteras, fatais e dominadoras. Elas estão presentes também em seus contos, cerca de quase duzentos.

Afim de melhor compreensão dessas caraterísticas vamos organizá-las  nas duas fases em que a obra machadiana foram divididas: a primeira que ainda apresenta características do Romantismo; e a segunda, que inaugura o Realismo no Brasil.

A primeira fase da ficção machadiana: romântica

Apesar de mais próximo da era romântica, Machado de Assis, em sua primeira fase, quebra com Ressurreição (1872) alguns traços característicos dos românticos, como a idealização exacerbada do amor e da mulher e revela o que há de melhor no escritor cearense, enaltecendo o aspecto urbano e social, formadores do indivíduo. Ainda, nesse período, escreve grande parte de sua obra teatral. Entretanto, nesse período de transição em que estava, o autor fluminense não era considerado romântico, nem realista. 
As principais características dessa fase são:

Conformismo com os valores da época: Machado de Assis escreve para uma classe burguesa e não se atenta – ou busca não demonstrar em sua escrita – os valores deturpados da época. De forma geral, o autor compactua com as hipocrisias que, posteriormente na segunda fase, seriam desnudadas.

Esquematismo psicológico: os romances inaugurais de Machado geralmente não possuem personagens com profundidade psicológica, isto é, são planos em sua essência. Machado constrói figuras que ficam na dicotomia bom e mau e, com isso, não há nenhuma discussão realmente aprofundada a partir delas.

Linguagem carregada de lugares-comuns: apesar de haver em alguns momentos a utilização de recursos estilísticos interessantes, a primeira fase do autor distancia-se da complexidade narrativa e do uso da linguagem da segunda fase. 
As principais obras da primeira fase de Machado de Assis são: Contos Fluminenses, Ressurreição, Histórias da Meia-Noite, A Mão e a Luva, Helena, Iaiá Garcia.

A segunda fase da ficção machadiana: realista

Machado de Assis, em sua segunda fase, reinventou o romance brasileiro. Aqui há um aprofundamento no psicológico de suas personagens e a historicidade dá lugar para o íntimo do ser humano, seus anseios, além da própria hipocrisia da sociedade burguesa, desnudada em livros como Memórias Póstumas de Brás CubasAlfredo Bosi afirma que é nessa fase que o escritor desenvolve a "análise das máscaras que o homem afivela à consciência tão firmemente que acaba por identificar-se com elas". As principais características dessa fase são: 
Destruição da narrativa linear: o narrador torna-se o centro do eixo narrativo e, portanto, a linearidade do enredo dissolve-se. Machado de Assis brinca com o leitor, que é lançado ao meio de dúvidas em relação às personalidades ambíguas das personagens.
Análise psicológica: o interior das personagens é desnudado e o modo de ver o exterior muda conforme as reações psicológicas delas. Um grande exemplo disso é o narrador em primeira pessoa de Dom Casmurro que, a todo momento, tenta provocar e convencer o leitor de seu ponto de vista.
Aparência e essência: há sempre essa dualidade nas obras machadianas da segunda fase. De um lado, vê-se o amor em contraponto à incapacidade de amar; a solidariedade frente ao egoísmo; a autenticidade e a dissimulação; a luta entre os valores morais das personagens; o racionalismo e o instinto. O mais interessante, porém, é que toda essa análise não esgota a imensidão das ações humanas descritas nas obras.
Análise dos valores sociais: a ficção machadiana, ao focar no interior das personagens, também permite desconstruir os valores das classes dominantes da sociedade brasileira. A vida social que reverbera na obra de Machado de Assis permite discutir sobre diversos temas, como o casamento, a escravidão e a política. Romances como Memórias Póstumas de Brás Cubas e contos como Pai contra Mãe são o ápice da incisiva crítica social de Machado.

Pessimismo: o pessimismo é presente em sua obra, mas essa visão pessimista do autor era decorrente de um reflexão sem ilusões da realidade. Um exemplo clássico é o fechamento do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual o protagonista afirma “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, após relembrar todos os anos de sua vida fazendo parte da classe dominante fluminense.

Humor: Machado de Assis recebeu influências de autores ingleses como Jonathan Swift e Laurence Sterne, especialmente no que diz respeito ao humor presente em sua obra. O leitor ri, mas, no final, fica desolado com os fatos apresentados.
A desfaçatez de classe: por meio de personagens que estão em uma posição social abastada, Machado de Assis consegue denunciar suas imoralidades, seus desvios. Brás Cubas, por exemplo, apresenta diversos fatos em sua narração que evidenciam o descaramento moral da época.
Perfeição expressiva: a linguagem machadiana é inventiva e com alto grau de refinamento. Mesmo que parte de seu vocabulário pareça antigo, há uma sensação dominante de modernidade estilística.

Como se pode notar, há um avanço gigantesco entre a primeira e a segunda fase de Machado de Assis, demonstrando um amadurecimento que permitiu alçar seu nome entre os grandes da literatura brasileira. As principais obras da segunda fase do autor são: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Papéis Avulsos, Histórias sem Data, Quincas Borba, Várias Histórias, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires. 

 Fontes: