quinta-feira, 20 de maio de 2021

Capitu: heroína ou anti-heroína?

Publicado pela primeira vez em 1899, “Dom Casmurro” é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu. 

Machado de Assis, autor sutil e de penetração aguda em questões sociais, arma o problema e testa seu leitor. É impressionante como isso vale ainda hoje, mais de um século depois do lançamento do livro. O romance é a história de um homem de posses que ama uma moça pobre e esperta e se casa com ela. Em sua velhice, ele escreve um romance de memórias para compreender melhor a vida. 

Capitu, até a metade do livro, é quem dá as cartas na relação. É inteligente, tem iniciativa, procura articular maneiras de livrá-lo do seminário etc. Trata-se de uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal do século XIX. Nesse sentido, Capitu representa no livro duas categorias sociais marginalizadas no Brasil oitocentista: os pobres e as mulheres. A personagem acabará por “perturbar” a família abastada, ao casar-se com o homem rico.

Nesse sentido, a questão central do livro não é o adultério, e sim como Machado introduz na literatura brasileira o problema das classes e, ainda, de forma inovadora, a questão da mulher. Dom Casmurro coloca no centro de sua temática a menina que não se deixa comandar e, em virtude disso, perturba a ordem vigente naquele ambiente social estreito e conservador.  

Dom Casmurro” é uma obra narrada em primeira pessoa por um homem já velho e solitário, o sexagenário, ex-seminarista e bacharel em Direito Bento Santiago, que está tentando “atar das duas pontas da vida” (infância e velhice). Bento Santiago era um homem bastante inseguro, mimado e muito ciumento. Tem sua vida, desde o útero, sendo decidida por sua mãe D. Glória, uma viúva, com caracteres conservadores e que, por sua beatice, faz uma promessa de ser o seu único filho padre. O tom do romance, que é construído em flashback, é de uma pessoa desiludida e amargurada, e sua visão dos fatos narradas é totalmente subjetiva e unilateral. Por conta disso, o livro adquire diversas leituras possíveis e permanece-se com a dúvida sobre o adultério de Capitu.

É interessante ver como a recepção ao livro se modificou com o passar do tempo. Quando foi lançado, era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.

Nesta última possibilidade de leitura, percebe-se o peso do possível adultério em suas costas. Não se trata apenas de uma questão conjugal entre iguais, mas de uma condenação de classe. Bentinho utiliza o arbítrio da palavra para culpar sua esposa. Mas é ele quem narra os acontecimentos e, por isso, pode manipular os fatos da maneira que melhor lhe convém. Não se sabe até que ponto os fatos relatados correspondem ao que ocorreu, ou são uma interpretação feita pelo personagem, que, além de tudo, escreve que não tem boa memória. 

Bento Santiago narra a história na primeira pessoa, relatando o seu amor por Capitu e o final trágico do seu romance. Apaixonado por Capitu desde a adolescência, casa com ela e têm um filho, Ezequiel, porém sua felicidade é abalada pela morte do melhor amigo, Escobar, com quem começa a desconfiar que a mulher o traía. A semelhança física entre o filho e o antigo companheiro parece ser a prova do adultério. Por isso, ao contar sua história desde a infância, tenta compreender algo mais do que o suposto adultério de sua mulher: ele quer saber se ela sempre foi como ele a via depois do casamento: falsa e dissimulada. 

Enquanto Bentinho narra seus amores, ele (Dom Casmurro) manipula nossas opiniões, pois vai dando pistas de que ela poderia mesmo tê-lo traído e ter tido um filho com o melhor amigo dele, mas, na verdade, essas pistas não são concretas para se ter certeza da traição de Capitu. Fique esperto: é a voz dele, rico e bem-sucedido advogado, que você lê. Capitu não está mais lá no seu "julgamento" para se defender.

Sabemos que o texto narrado em primeira pessoa tem um ponto de vista limitado. Pois, ao leitor é dada somente a versão dos fatos segundo uma só voz, que é a do narrador. Dom Casmurro faz de seu leitor, o seu confidente, ele tenta persuadi-lo, convencê-lo da traição de Capitu e da legalidade dos seus atos delineados e repletos de ciúme. Assim, temos uma narrativa que com sua intenção e lógica de argumentação, porém em primeira pessoa, colocam a legitimidade da narração em discussão. 

Além disso, é importante frisar que a todo momento do livro, ele fala ”se não me falha a memória”, ou seja, suas lembranças podem estar um pouco distorcidas, sem contar que uma das características de Bentinho é seu sentimentalismo. Dois elementos da narrativa corroboram para confirmar essas afirmações: o narrador e o tempo.

O narrador é Bento Santiago, transformado já no velho Dom Casmurro, que significa teimoso, turrão ou carrancudo. O foco narrativo é, portanto, em primeira pessoa e toda a narrativa é uma lembrança do personagem sobre sua vida, desde os tempos de criança, quando ainda era chamado de Bentinho. Porém, trata-se de um narrador problemático: primeiro porque o narrador é um homem emotivamente arrasado e instável; segundo porque ele narra os fatos que não conhece bem, podendo ser tudo fruto de sua imaginação.

Já o tempo da narrativa é psicológico, e não cronológico. Esse recurso é chamado impressionismo, porque o narrador se detém nas experiências que marcaram sua subjetividade. Seria usada pelo escritor francês Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido. A falibilidade da memória surge como fator de complexidade, uma vez que uma lembrança só pode ser acessada de um momento presente. 

Os acontecimentos, então, passam pelo filtro da subjetividade presente. É por isso que a descrição que o narrador faz de Capitu, como uma pessoa volúvel e sensual, deve ser posta em dúvida pelo leitor. O sentimento de ciúme exacerbado de Bento pode ter desvirtuado a figura da personagem. 

O livro permite um verdadeiro estudo de caso de direito, pois temos Dom Casmurro, formado em direito, sendo acusador e juiz de Capitu. Ele é também a única testemunha e você tem somente acesso à versão da história que ele conta, ou seja, somente por meio de seu ponto de vista super ciumento. Bentinho julga Capitu, mas Machado de Assis coloca Bentinho para ser julgado pelo leitor.

Contada pelos olhos de Bento, tem um teor jurídico, sendo que nosso protagonista já era formado em direito na época em que escreveu. Dessa forma, ele usa de artifícios para colocar em pauta sua insegurança e ciúme relacionados a sua amiga de infância, Capitu. Assim, desenvolve desde o início do livro, a pergunta que só iria fazer em sua última página, e na qual ronda os pensamentos de Dom Casmurro.

Bentinho e Capitu cresceram juntos. Já na sua adolescência, Bentinho sempre ficava deslumbrado com as espertezas e a capacidade de dissimulação, segundo ele, que Capitu possuía para lhes tirar de situações embaraçosas. Vale ressaltar, que o narrador carrega nas tintas ao descrever tais ‘espertezas’ da jovem Capitu, com o objetivo de, desde o início da obra, convencer o leitor da capacidade que aquela tinha para mentir e dissimular, e assim, fazer com que este esteja, ao final da obra, convencido do suposto adultério.

Ao longo de toda a narrativa do romance, é recorrente a imagem de Capitu como uma personagem de olhos de cigana, oblíqua e dissimulada, pois esta imagem será o enlace utilizado pelo narrador para o tempo todo, lembrar/ratificar o leitor da sua suspeita, ao final da trama, a sua condenação dada à personagem. Nesse sentido, é que Celidonio (2006:32) afirma: “Essa dissimulação é vista por Bentinho como um fator positivo, mas na perspectiva de D. Casmurro, do homem enganado, é congênita.”  

Percebemos como o processo de construção de Capitu, enquanto agente das mazelas ocorridas na vida de Bentinho, é na realidade um meio do narrador - D. Casmurro - puni-la. Meio que talvez de outra forma não fosse possível, se pensarmos quão inexistente era a presença de personagens masculinas de personalidades fortes no romance. 

Após o casamento, Capitu tornou-se uma mulher reclusa, submissa e é silenciada pelo narrador. Suporta os ciúmes de seu marido até o limite da separação de ambos e sua ida para a Europa com filho, tendo na sua morte, a representação de seu ‘castigo’, e por completo, seu silêncio.  

A esse respeito, Celidonio (2006:48-49) caracteriza a obra machadiana inverossímil, uma vez que a Capitu casada, submissa, em nada parecia com a Capitu da adolescência, questionadora. Se o objetivo de Dom Casmurro é provar que a Capitu não mudou, que “uma estava dentro da outra como a fruta dentro da casca” (OCI: 942), pode-se fazer uma comparação breve entre as duas. A Capitu menina, mesmo numa posição socialmente inferior, satisfaz os quesitos de individuação. Tem clareza nas decisões, o que supõe distância em relação ao sistema de sujeições, obrigações e fusões imaginárias do paternalismo. Aventura-se ao uso da razão, ousa transitar no universo reconhecido, por tradição, como universo masculino, transgredindo os sistemas delimitadores da cultura patriarcal.

Capitu depois de casada continuou da mesma forma como era quando adolescente? Se lembrarmos bem da Capitu menina, como sugere Casmurro, a Capitu esposa é totalmente diferente, perde a curiosidade, a vivacidade, a determinação, não se posiciona frente aos fatos, vai silenciando até que se entrega totalmente às determinações do marido. Logo, não é verossímil que a menina tão determinada tenha se tornado uma mulher calada, submissa, sem nenhuma explicação. A única característica que não teria desaparecido seria a dissimulação, pois esta mesmo casada, durante o enterro de Escobar, tem suas ações descritas como dissimuladas. 

Afinal, Capitu traiu ou não Bentinho? É uma heroína ou uma anti-heroína?

O principal argumento de Dom Casmurro para dizer que Capitu havia lhe traído foi dizer que o filho não era dele, e sim de Escobar, pois ele tinha traços parecidos aos da criança. Mas como Bentinho estava muito desconfiado, ele pode ter criado em sua mente a semelhança de traços entre a criança e Escobar... Cientistas e doutores nomeados dizem que a mente é poderosa e pode criar imagens do que nós acreditamos, mas nem sempre é verdade.

Outro argumento de Casmurro era a afirmação de que, desde a infância, Capitu era dissimulada, diante das maiores saias justas, ela mentia tão bem e agia tão naturalmente, que chegava a ser desconcertante, além de ser muito manipuladora. Porém, esse argumento também se desfaz quando percebemos que depois de casada, Capitu se transforma totalmente, passa a se comportar de forma recatada e submissa.

Ou seja, a resposta não se sabe ao certo, pois em nenhum momento do romance isso fica explícito. Isso porque Machado de Assis conseguiu tecer a história de maneira tão genial, deixando esse mistério “no ar” e produzindo essa dúvida no leitor.

Como o livro é narrado pelo próprio Bentinho, ele só apresenta o seu ponto de vista, sua perspectiva da história. Não é possível afirmar, por meio da investigação das marcas textuais no romance, que Capitu tenha ou não tenha traído Bentinho”, diz Andrea de Barros, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp. E o propósito do livro é justamente transmitir ao leitor a angústia da dúvida.

Mesmo se levarmos a ferro e a fogo a própria narrativa de Bentinho, temos um personagem que envelhece profundamente arrependido,  que se acredita traído – mas que, no fundo, não tem certeza se não era melhor ter simplesmente deixado a história pra lá. 

Dom Casmurro, enfim, é uma viagem pela mente perturbada de Bento, pela forma como o protagonista percebe a realidade. Pode tudo ser uma ilusão? Pode. Seja na vida de Bento, seja na sua. Essa é mensagem de Machado. E é isso que faz de Dom Casmurro uma joia da literatura universal.