sexta-feira, 19 de março de 2021

O defunto autor


Memórias Póstumas de Brás Cubas é o maior clássico da literatura realista de língua portuguesa. Publicado em 1881, este livro marca o início oficial do realismo no Brasil e ainda serve de divisão entre a fase romântica e a realista na obra autor, marcando o início da fase mais madura e qualificada de Machado.

A estética realista-naturalista predominou na segunda metade do século XIX. Após a euforia romântica idealista do início, o século XIX retomava uma visão de mundo baseada na razão e na observação objetiva da natureza. O cientificismo dominava as filosofias deste período, marcado por avanços tecnológicos e urbanização acelerada. A obra mostra, de forma realista, portanto, não idealizada, a decadente elite burguesa do Rio de Janeiro, ainda atrelada ao conservadorismo. Assim, o escritor ironiza os costumes burgueses de sua época, enquanto critica a hipocrisia e futilidade dessa classe.

Surgem então, nesse período, dois tipos de narrativas: o romance social, também chamado de romance naturalista, que analisava predominantemente o comportamento dos indivíduos em seu convívio na sociedade, e o romance psicológico, também chamado de romance realista, que analisava prioritariamente as contradições e angústias internas dos indivíduos. Embora todos os romances da época apresentassem características dos dois tipos de análise, sempre é possível determinar qual delas (social ou psicológica) prevalece. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas prevalece a narrativa psicológica das personagens, caracterizando-se, portanto, como romance realista. 

Memórias Póstumas é uma narrativa confusa e sem linearidade. O personagem principal, como sugere o título, resolve, depois de morto, contar a história da sua vida através de uma seleção dos episódios mais relevantes, desde o seu nascimento até a sua morte. Essa narrativa não segue, porém, nenhuma sequência cronológica. Ele inicia pelo seu delírio e morte, depois conta o seu nascimento e vai alternando, sem qualquer critério lógico, episódios de diversas fases da sua vida, sempre com uma alta dose de humor e visão pessimista.

A narrativa é realizada em primeira pessoa, ou seja, há um narrador personagem que é também o protagonista da história, o finado autor. Como Brás Cubas está contando a sua própria história, ele é o que chamamos de “narrador não confiável”. Todos os fatos e demais personagens nos são apresentados a partir de sua ótica pessoal e subjetiva. 

A característica mais marcante do estilo machadiano é a digressão. A narrativa de Machado de Assis é constantemente interrompida por comentários metalinguísticos, intertextualidades, histórias paralelas e, principalmente, análises filosóficas da sociedade e do indivíduo. Isso faz com que seus enredos fiquem sempre fragmentados e embaralhados. Essa dificuldade de leitura, no entanto, é compensada pelo humor inteligente e pela estrutura dinâmica e moderna de seus livros.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas o foco narrativo centra-se no finado autor que, por sua condição de morto, não se compromete com a linearidade nem com a suposta seriedade dos vivos. Inspirado em Tristam Shandy, esse romance - digressivo por excelência e afeito à exposição exuberante de teorias - apresenta um herói demoníaco na acepção lukacsiana do termo, que convoca o leitor a acompanhá-lo nos volteios de sua subjetividade.

"[...] Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque não chegamos à parte narrativa dessas memórias. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado."

Nota-se que nesse passeio, o narrador está sempre a tomar o leitor pela mão, convida-o, pede-lhe mais que paciência, tolerância, provoca-o, caçoa dele, mas antes de tudo o tem em alta conta de espectador íntimo da sua capacidade de narrar. 

A característica mais marcante deste livro é o pessimismo. Tudo é analisado a partir de uma visão negativa, seja em relação ao comportamento social ou aos dramas psicológicos das personagens. No entanto, esta visão pessimista fica, muitas vezes, disfarçada ou escondida sob a presença marcante do humor, principalmente a ironia. A observação dessa dicotomia pessimismo e humor é a principal chave para uma leitura compreensiva desse clássico da literatura brasileira.

Se o leitor não ficar atento, pode terminar a leitura do livro com uma visão positiva do protagonista. Uma leitura cuidadosa, no entanto, mostra que Brás Cubas é um boa vida, arrogante e incompetente, membro de uma elite endinheirada e improdutiva. Essa situação privilegiada permite que Brás Cubas deboche da sociedade e seus membros com uma ironia sarcástica que não poupa ninguém.

Por fim, a obra configura-se em crítica à elite burguesa carioca do século XIX. Brás Cubas é o seu representante — dono de escravos, fútil, superficial, preocupado com aparências. Ele segue a trajetória de um burguês da época: tem uma amante com quem gasta dinheiro, estuda na Europa, consegue um diploma, tenta a carreira política e, para isso, precisa de um casamento. Além disso, valoriza as aparências, o título, a origem social, sem contribuir, de fato, para o crescimento do país.

Fontes:

Português. com

Micheliny Verunschk, em Discutindo a Literatura