Há alguns anos fiz a adaptação do texto de Gil Vicente, o Auto da Índia para encenar com meus alunos do Ensino Médio, quando estávamos estudando Humanismo e Gil Vicente. Vejam como ficou:
AUTO DA ÍNDIA (adaptação)
Á farsa seguinte chamam Auto da Índia . Foi fundada sobre que uma mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não ia; e ela de pesar, está chorando e fala-lhe uma sua criada. Foi feita em Almada, representada à muito católica rainha Dona Lianor. Era de 1509 anos. Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.
E porque o amo já vai partir?
Ama: Eu lá vou chorar por isso? Já vai tarde!
Moça: Por minha alma que pensei que a senhora chorava pelo amo!
Ama: Por que eu chorarei por esse demo?
Até parece que fico triste com isso! (com cinismo)
Moça: Então por que estais tristes?
Diga-me, pela sua vida!
Ama: Ora, deixe-me! Estão dizendo que ele não vai mais. (triste)
Moça: Quem disse essa mentira?
Ama: Ah, disseram-me que com certeza ele não partirá agora!
Moça: Como, se eles já estão em Restelo? Só se virem a nado!
Ama: Ah, queria tanto que ele fosse embora!
Moça: Não se preocupe, ele já muito vai longe!
Ama: Que o diabo o leve para a índia, pois meu coração está amargurado, parece que vai sair de mim!
Moça: Não fique assim, eu irei saber se é verdade!
Ama: Vá, vá com minha bênção.
(Vai Moça e fica Ama dizendo)
Ama: Rogo por Santo Antonio que nunca mais ele volte aqui!
Quem não se não enfada
De um homem desse?
Moça: (vem cantando) - Dê-me um prêmio, Senhora,
Ele já vai longe, em alto mar!
Ama: Te dou uma touca de seda.
Moça: Ou, quando ele voltar dê-me do que ele lhe trouxer!
Ama: Nem me lembre desse dia!
Agora vamos é aproveitar! (alegre)
Moça: (falando ao público, à parte) - Virtuosa está minha Ama!
Tenho até pena do amo!
Ama: O que tu estás falando aí?
Moça: Ah, nada, falo com esta cama!!! (fala disfarçando)
Ama: Essa cama, sei ...
Me dá essa agulha aí (mostrando para o público) Eu não fiarei um fio sequer, ele me deixou sem nada!
Moça: (falando à parte para o público) - Mentira!!!
Deixou-lhe para três anos: trigo, azeite, mel e panos.
Ama: Que droga tanto falas? Não estou entendendo?
Moça: Ah, estou dizendo que quem fica assim sem nada como a senhora .... coitada, né?
Ama: Ah, ah, ah, ah, ah!
Estás muito graciosa!
Quem é moça e formosa não fica chorando a má sorte.
Se ele foi viajar ...
Quem vai esperar tanto?
Que Deus me perdoe, na hora de minha morte.
Mas envelhecer esperando pelo vento?
Serei uma imbecil se fizer o contrário!
Castelhano: Paz seja nesta casa!
Ama: Você? Pensei que fosse alguém!
Castelhano: Não sou nada para a senora?
Ama: Bem que ventos foram esses que lhe trouxeram?
Não me diga que quer ficar aqui?
Castelhano: Vim falar com a senora, pois desde aquele dia morro de saudade!!
Ama: Não me faça rir! Ande vá embora!
Castelhano: Oh, pela luz de todo Portugal,
Pielo amore que sinto pela senora, não me mande ir embora. Sei que seu marido já viajou.
Ama: Sim, ele foi antes de ontem.
Castelhano: Que yo diabo o leve!
Para minha felicidade, posso gozar com esta alegria!
Ama: (para a moça) - Vai ver o cachorro que está lambendo as tigelas!
Moça: São os gatos que estão lambendo as tigelas.
Castelhano: O que há com a senora, falo em alho e a senora vem com bugalhos!
Ama: Se o senhor só fala besteira, falaremos em quê?
Castelhano: Não me faça uma desfeita, senão faço uma asneira
A senora pensa que sou o quê?
Sou homem e muito homem,
Trago no corazon um leon!
Ama: Esta bem, queres passar a noite aqui?
Ainda está muito cedo; venha mais tarde, então conversaremos.
Castelhano: A que horas posso vir?
Ama: Ás nove horas em ponto.
Atira uma pedrinha na janela do meu quarto,
Então lhe abrirei de muito boa vontade:
pois você é homem de verdade
não o deixarei na mão.
Castelhano: Sabes o que ganhas com isso?
Yo mundo! Yo mundo é todo seu!
Pensa que só tenho essa roupa que vês?
Tenho muito mais do que pensas!
Beijo suas mãos, senora, com sua licença!
Ama: Vá embora e volte mais tarde!
Moça: Jesus! Como é fanfarrão!
Vai ver que esse demônio é ladrão. Não se fie nele!
Ama: Ah, já lhe prometi abrir a janela à noite! (fala com cinismo)
Ah, lembra daquele meu antigo namorado? Ele esteve aqui.
Moça: Quem? Aquele conquistador sombreiro?
Ele é safado, não pensa em outra coisa, o coitado, senão em dinheiro!
Ama: Ele não é desse tipo, tu estás enganada!
Moça: Pois sim! Ele está para aparecer aqui de novo!
Lemos: Ô de casa!
Ama: Quem está aí?
Lemos: Vosso apaixonado, minha senhora!
Ama: Oh, que tamanha mesura!
Sou rainha, por acaso?
Lemos: Você é minha imperadora!
Mas como estás?
Ama: Meus marido foi-se à Índia.
Lemos: A senhora está tão bela!
O que me pedir eu faço.
Ama: Peço que vá embora!
Lemos: Quem está atirando pedras na janela?
Ama: (disfarçando) - São meninos que vivem brincando na rua.
Lemos: Não me diga, minha senhora!!!
Ama: Vá, vá aqui para a cozinha que estão me chamando.
Castelhano: Abra-me la janela, la senora prometeu abrir!!!
Ama: Fale baixo! Infelizmente, não posso deixá-lo entrar agora,
Meu irmão está aqui! Disfarce, disfarce!!!
(À parte para o público)
Ora viste o azarado? Que falta de sorte!!!
Lemos: Com que a senhora está falando?
Ama: Com ninguém (disfarçando).
O senhor quer jantar? Eu não tenho nada que lhe dar.
Lemos: Mande a Moça ao mercado comprar tudo o que está faltando.
Pois dinheiro é que não falta! (começa a cantar alto)
Ama: O senhor não pode cantar mais baixo?
Lemos: Ora, deixe-me cantar, senhora!
Ama: O que a vizinhança vai dizer, que quando meu marido não está,
Ponho o senhor para cantar na minha casa!
(Ouve uma pedra na janela)
Vá para esse outro quarto, que já estou ouvindo barulho,
Tenho tanto medo da falação do povo!!!
(Chega-se à janela e fala baixo)
Ama: Meu irmão ainda está aqui!
Castelhano: Que diabo ele está fazendo la essa hora?
Não demora vai amanhecer!
Ama: Venha aqui outro dia!
Castelhano: Ah, senora, que raiva sinto de vós!
Abra-me la janela, pielo amore de Dios!
Ama: Não posso, volte amanhã à noite!
Castelhano: Assossiega, corazon! Dorme, leon!
Juro que la próxima vez isto não ocorrerá!
Pois vou destruir lo mundo, queimar la casa, depois queimar la cidad!
Ama: Por que tanta jura? Isso é só conversa!
Lemos: O que é isso? O que está acontecendo aí? (fala desconfiado)
Ama: (disfarçando) - Não é nada! Já está para amanhecer, não está na hora de o senhor ir embora? Já namoramos, já nos divertimos, volte outro dia ...
(Lemos se despede e sai)
Moça: (À para público) - Oh, que mesuras tamanhas!
Quantas artes, quantas manhas, sabe fazer minha ama!
Um na rua, outro na cama!
Ama: Que falas aí?
Moça: (disfarçando) - Nada, estou falando com meus botões que já fazem dois anos que meu amo partiu. Não vai demorar muito o amo há de voltar para casa.
Senhora, irei ver se o amo já está chegando! (Sai)
Ama: Mas que graça seria, se meu marido voltasse vivo a Lisboa para minha companhia!
Isto não pode acontecer, quero mais é que ele morra!
Vai, vai comprar o que comer, tens muito o que fazer, não demore!
Moça: Aí, senhora, venho morta! O amo chega hoje aqui!
Ama: Má notícia tu me trazes, sua excomungada torta!
Moça: A embarcação em que ele foi, vem com muita alegria.
Juro por minha vida, minha senhora, que não falo mentira.
Ama: Que minha mãe me mate se eu der uma prova de alegria com a volta dele.
Ele não vai ter nada de mim, nem o que comer!
Marido: Olá!
Ama: (para o público, falando baixo) - Que péssima hora é esta, ele chegou!
Quem é?
Marido: Homem de pé!
Ama: (para o público) - Quer fazer graça é?! Sobe, sobe para cima!
Moça: É o nosso amo, como veio rápido!
Ama: Teu amo? Jesus, Jesus!
Pedes a ele tua recompensa!
Marido: Abraçai-me, minha amada.
Ama: Jesus, como estás negro e tostado!
Não vos quero, não vos quero!
Marido: Mas eu quero a você, seja minha mulher!
Ama: Moça, o que é que tu estás olhando?
Vai depressa fazer logo a comida, enquanto conversamos!
(disfarçando) - Ora como foi por lá?
Marido: Passei por muitas aventuras!
Ama: (fingindo) - E eu, oh quanto chorei, chorei muito quando a armada foi embora.
E quando vi que ias mesmo partir, Jesus, eu fiquei doente, três dias não comi nada, minha alma queria sair.
Marido: A cem léguas daqui surgiu uma tormenta que nunca vi igual.
Ama: Isso foi na quarta-feira?
Marido: Sim, e começou de madrugada.
Ama: Pois é, eu fui de madrugada a nossa Senhora d'Oliveira, lhe prometi uma missa, e na quinta-feira fui ao Espírito Santo a outra missa também.
Chorei tanto que ninguém nunca viu tanto pranto.
Correste daquela tormenta?
Marido: Durou três dias. Demos a volta pelo mar
A armada voava que o mar se espedaçava!
Pelejamos e roubamos, corremos muitos perigos!
Ama: (com cinismo) - Olha só, os três dias, foram as minhas três romarias!
O senhor lá correndo perigo e eu aqui a esmorecer, fazendo mil promessas, mil choros, mil orações!
Marido: Assim como havia de ser.
Ama: Juro que de tanta saudade nem pão não comia
Ficava triste a cada dia!
Carne, então, nunca comi!
Onde não há marido tudo é tristeza, não há prazer nem alegria!
E o senhor, lembrava de mim lá?
Marido: E como?
Ama: Duvido! Lá tem tantas índias formosas,
E eu aqui triste, encerrada nesta casa, por causa de minha honestidade!
Marido: Ah, que nada, lá só há mortes, tantas brigas ...
Ama: Mas voltaste muito rico ...?
Marido: Se não fosse o capitão, tinha trazido a minha parte: um milhão ...
Ama: Não me faça rir! Sua vida vale mais que qualquer riqueza!
Louvado seja o Senhor que me trouxeste de volta!
A armada veio muito carregada?
Marido: Vem tão doce e embandeirada!
Ama: Vamos lá, quero ir ver.
Marido: Se você sente prazer nisso, vamos!
Ama: Sim, sim, pois estou muito aborrecida aqui dentro de casa.
(Vão-se a nau e fenece esta farsa)