quinta-feira, 25 de março de 2021

Gil Vicente em Auto da Índia


Há alguns anos fiz a adaptação do texto de Gil Vicente, o Auto da Índia para encenar com meus alunos do Ensino Médio, quando estávamos estudando Humanismo e Gil Vicente. Vejam como ficou:

AUTO DA ÍNDIA (adaptação)

Á farsa seguinte chamam Auto da Índia . Foi fundada sobre que uma mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não ia; e ela de pesar, está chorando e fala-lhe uma sua criada. Foi feita em Almada, representada à muito católica rainha Dona Lianor. Era de 1509 anos. Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.

Moça:
(chorando) - Jesus! Jesus! O que está acontecendo?
                                 E  porque o amo já vai partir?

Ama: Eu lá vou chorar por isso? Já vai tarde!

Moça: Por minha alma que pensei que a senhora chorava pelo amo!

Ama: Por que eu chorarei por esse demo?
           Até parece que fico triste com isso! (com cinismo)

Moça: Então por que estais tristes?
            Diga-me, pela sua vida!

Ama: Ora, deixe-me! Estão dizendo que ele não vai mais. (triste)

Moça: Quem disse essa mentira?

Ama: Ah, disseram-me que com certeza ele não partirá agora!

Moça: Como, se eles já estão em Restelo? Só se virem a nado!

Ama: Ah, queria tanto que ele fosse embora!

Moça: Não se preocupe, ele já muito vai longe!

Ama: Que o diabo o leve para a índia, pois meu coração está amargurado, parece que vai sair de mim!

Moça: Não fique assim, eu irei saber se é verdade!

Ama: Vá, vá com minha bênção.

(Vai Moça e fica Ama dizendo)

Ama: Rogo por Santo Antonio que nunca mais ele volte aqui!
           Quem não se não enfada
           De um homem desse?

Moça: (vem cantando) - Dê-me um prêmio, Senhora, 
                                        Ele já vai longe, em alto mar! 

Ama: Te dou uma touca de seda.

Moça: Ou, quando ele voltar dê-me do que ele lhe trouxer!

Ama: Nem me lembre desse dia!
           Agora vamos é aproveitar! (alegre)

Moça: (falando ao público, à parte) - Virtuosa está minha Ama!
                                                              Tenho até pena do amo!

Ama: O que tu estás falando aí?

Moça: Ah, nada, falo com esta cama!!! (fala disfarçando)

Ama:  Essa cama, sei ...
            Me dá essa agulha aí (mostrando para o público) Eu não fiarei um fio sequer, ele me              deixou sem nada!

Moça: (falando à parte para o público) - Mentira!!!
            Deixou-lhe para três anos: trigo, azeite, mel e                                                                             panos.

Ama: Que droga tanto falas? Não estou entendendo?

Moça: Ah, estou dizendo que quem fica assim sem nada como a senhora .... coitada, né?

Ama: Ah, ah, ah, ah, ah!
          Estás muito graciosa!
          Quem é moça e formosa não fica chorando a má sorte.
          Se ele foi viajar ...
          Quem vai esperar tanto?
          Que Deus me perdoe, na hora de minha morte.
          Mas envelhecer esperando pelo vento?
          Serei uma imbecil se fizer o contrário!

Castelhano: Paz seja nesta casa!

Ama: Você? Pensei que fosse alguém!

Castelhano: Não sou nada para a senora?

Ama: Bem que ventos foram esses que lhe trouxeram?
           Não me diga que quer ficar aqui?

Castelhano: Vim falar com a senora, pois desde aquele dia morro de saudade!!

Ama: Não me faça rir! Ande vá embora!

Castelhano: Oh, pela luz de todo Portugal,
                      Pielo amore que sinto pela senora, não me mande ir embora. Sei que seu                                  marido já viajou.

Ama: Sim, ele foi antes de ontem.

Castelhano: Que yo diabo o leve!
                      Para minha felicidade, posso gozar com esta alegria!

Ama: (para a moça) -  Vai ver o cachorro que está lambendo as tigelas!

Moça: São os gatos que estão lambendo as tigelas.

Castelhano:  O que há com a senora, falo em alho e a senora vem com bugalhos!

Ama: Se o senhor só fala besteira, falaremos em quê?

Castelhano: Não me faça uma desfeita, senão faço uma asneira
                     A senora pensa que sou o quê?
                     Sou homem e muito homem,
                     Trago no corazon um leon!

Ama: Esta bem, queres passar a noite aqui?
           Ainda está muito cedo; venha mais tarde, então conversaremos.

Castelhano: A que horas posso vir?

Ama: Ás nove horas em ponto.
           Atira uma pedrinha na janela do meu quarto,
           Então lhe abrirei de muito boa vontade:
           pois você é homem de verdade
           não o deixarei na mão.

Castelhano: Sabes o que ganhas com isso?
                      Yo mundo! Yo mundo é todo seu! 
                      Pensa que só tenho essa roupa que vês?
                      Tenho muito mais do que pensas!
                      Beijo suas mãos, senora, com sua licença!

Ama: Vá embora e volte mais tarde!

Moça: Jesus! Como é fanfarrão!
            Vai ver que esse demônio é ladrão. Não se fie nele!

Ama: Ah, já lhe prometi abrir a janela à noite! (fala com cinismo)
          Ah, lembra daquele meu antigo namorado? Ele esteve aqui.

Moça: Quem? Aquele conquistador sombreiro? 
            Ele é safado, não pensa em outra coisa, o coitado, senão em dinheiro!

Ama: Ele não é desse tipo, tu estás enganada!

Moça: Pois sim! Ele está para aparecer aqui de novo!

Lemos: Ô de casa!

Ama:  Quem está aí?

Lemos: Vosso apaixonado, minha senhora!

Ama: Oh, que tamanha mesura!
           Sou rainha, por acaso?

Lemos: Você é minha imperadora!
               Mas como estás?

Ama:  Meus marido foi-se à Índia.

Lemos: A senhora está tão bela!
              O que me pedir eu faço.

Ama: Peço que vá embora!

Lemos: Quem está atirando pedras na janela?

Ama: (disfarçando) -  São meninos que vivem brincando na rua.

Lemos:  Não me diga, minha senhora!!!

Ama: Vá, vá aqui para a cozinha que estão me chamando.

Castelhano:  Abra-me la janela, la senora prometeu abrir!!!

Ama: Fale baixo! Infelizmente, não posso deixá-lo entrar agora,
           Meu irmão está aqui! Disfarce, disfarce!!!

                           (À parte para o público) 

           Ora viste o azarado? Que falta de sorte!!!

Lemos: Com que a senhora está falando?

Ama: Com ninguém (disfarçando). 
          O senhor quer jantar? Eu não tenho nada que lhe dar.

Lemos: Mande a Moça ao mercado comprar tudo o que está faltando.
              Pois dinheiro é que não falta! (começa a cantar alto)

Ama: O senhor não pode cantar mais baixo?

Lemos:  Ora, deixe-me cantar, senhora!

Ama: O que a vizinhança vai dizer, que quando meu marido não está,
           Ponho o senhor para cantar na minha casa!

                     (Ouve uma pedra na janela)

          Vá para esse outro quarto, que já estou ouvindo barulho,
          Tenho tanto medo da  falação do povo!!!

                 (Chega-se à janela e fala baixo)

Ama: Meu irmão ainda está aqui!

Castelhano: Que diabo ele está fazendo la essa hora?
                      Não demora vai amanhecer!

Ama: Venha aqui outro dia!

Castelhano:  Ah, senora, que raiva sinto de vós!
                      Abra-me la janela, pielo amore de Dios!

Ama: Não posso, volte amanhã à noite!

Castelhano: Assossiega, corazon! Dorme, leon!
                     Juro que la próxima vez isto não ocorrerá!
                     Pois vou destruir lo mundo, queimar la casa, depois queimar la cidad!

Ama: Por que tanta jura? Isso é só conversa!

Lemos: O que é isso? O que está acontecendo aí? (fala desconfiado)

Ama: (disfarçando) - Não é nada! Já está para amanhecer, não está na hora de o senhor ir embora? Já namoramos, já nos divertimos, volte outro dia ...

(Lemos se despede e sai)

Moça: (À para público) - Oh, que mesuras tamanhas!
            Quantas artes, quantas manhas, sabe fazer minha ama!
            Um na rua, outro na cama!

Ama: Que falas aí?

Moça:  (disfarçando) -  Nada, estou falando com meus botões que já fazem dois anos que meu amo partiu. Não vai demorar muito o amo há de voltar para casa. 
              Senhora, irei ver se o amo já está chegando! (Sai)

Ama: Mas que graça seria, se meu marido voltasse vivo a Lisboa para minha companhia!
           Isto não pode acontecer, quero mais é que ele morra! 
           Vai, vai comprar o que comer, tens muito o que fazer, não demore!

Moça: Aí, senhora, venho morta! O amo chega hoje aqui!

Ama: Má notícia tu me trazes, sua excomungada torta!

Moça: A embarcação em que ele foi, vem com muita alegria.
            Juro por minha vida, minha senhora, que não falo mentira.

Ama: Que minha mãe me mate se eu der uma prova de alegria com a volta dele.
           Ele não vai ter nada de mim, nem o que comer!

Marido:  Olá!

Ama: (para o público, falando baixo) - Que péssima hora é esta, ele chegou!
           Quem é?

Marido:  Homem de pé!

Ama: (para o público) - Quer fazer graça é?! Sobe, sobe para cima!

Moça: É o nosso amo, como veio rápido!

Ama: Teu amo? Jesus, Jesus!
            Pedes a ele tua recompensa!

Marido: Abraçai-me, minha amada.

Ama: Jesus, como estás negro e tostado!
           Não vos quero, não vos quero!

Marido: Mas eu quero a você, seja minha mulher!

Ama: Moça, o que é que tu estás olhando? 
          Vai depressa fazer logo a comida, enquanto conversamos!
           (disfarçando) - Ora como foi por lá?

Marido: Passei por muitas aventuras!

Ama: (fingindo) - E eu, oh quanto chorei, chorei muito quando a armada foi embora.
           E quando vi que ias mesmo partir, Jesus, eu fiquei doente, três dias não comi nada, minha alma queria sair.

Marido: A cem léguas daqui surgiu uma tormenta que nunca vi igual.

Ama: Isso foi na quarta-feira?

Marido: Sim, e começou de madrugada.

Ama: Pois é, eu fui de madrugada a nossa Senhora d'Oliveira, lhe prometi uma missa, e na quinta-feira fui ao Espírito Santo a outra missa também.
          Chorei tanto que ninguém nunca viu tanto pranto.
           Correste daquela tormenta?

Marido: Durou três dias. Demos a volta pelo mar
               A armada voava que o mar se espedaçava!
               Pelejamos e roubamos, corremos muitos perigos!

Ama: (com cinismo) - Olha só, os três dias, foram as minhas três romarias!
           O senhor lá correndo perigo e eu aqui a esmorecer, fazendo mil promessas, mil choros, mil orações!

Marido: Assim como havia de ser.

Ama: Juro que de tanta saudade nem pão não comia
           Ficava triste a cada dia!
           Carne, então, nunca comi!
           Onde não há marido tudo é tristeza, não há prazer nem alegria!
           E o senhor, lembrava de mim lá?

Marido: E como?

Ama: Duvido! Lá tem tantas índias formosas,
           E eu aqui triste, encerrada nesta casa, por causa de minha honestidade!

Marido: Ah, que nada, lá só há mortes, tantas brigas ...

Ama: Mas voltaste muito rico ...?

Marido:  Se não fosse o capitão, tinha trazido a minha parte: um milhão ...

Ama: Não me faça rir! Sua vida vale mais que qualquer riqueza!
           Louvado seja o Senhor que me trouxeste de volta!
           A armada veio muito carregada?

Marido: Vem tão doce e embandeirada!

Ama: Vamos lá, quero ir ver.

Marido: Se você sente prazer nisso, vamos!

Ama: Sim, sim, pois estou muito aborrecida aqui dentro de casa.

                     (Vão-se a nau e fenece esta farsa)