quinta-feira, 8 de abril de 2021

Análise do conto A cartomante

Machado de Assis, em sua fase realista, volta-se à analise psicológica, fazendo uma dura crítica à sociedade da época a partir do comportamento de determinados personagens de sua ficção. Os contos A cartomante e Causa secreta, ambos publicados em Várias Histórias, em 1886, são exemplos de como os valores na consciência humana podem modificar-se segundo seus interesses. 

Vamos analisar aqui o conto “A cartomante” que pertence à fase madura do autor, apresenta as ideias realistas do momento, somadas ao tom pessimista, à ironia e forte crítica à sociedade de então, características marcantes do autor.

Embora a temática do adultério seja bem clara no texto, em uma leitura mais atenta percebe-se que o conto prioriza a questão da contradição humana, por meio do embate razão X emoção, ceticismo X credulidade.

É uma narrativa curta, mas apresenta quase todas as marcas estilísticas machadianas: a metalinguagem, a intertextualidade, a paródia, o humor cáustico e permanente, a ironia sutil e a personificação.

A partir de uma citação shakespeariana, o autor inicia o conto utilizando o recurso da intertextualidade: ‘‘Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Mas esse recurso configura-se uma armadilha para o leitor, pois, à primeira vista, parece se referir somente à fala ingênua de Rita: “Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo”. 

Essa é a grande jogada do texto: na medida em que a citação de Shakespeare em Hamlet dá o tom da narrativa, pois não só a inicia, como retoma ao texto por duas vezes (na fala de Rita e na memória de Camilo) e justifica o desfecho.

Afinal, quais seriam essas coisas que existem entre o céu e a terra que nem nossa filosofia pode sonhar? A contradição humana? A credulidade no invisível? A racionalidade que cega? As grandes paixões? O inesperado das situações?

Nem Shakespeare ousaria responder…

Quando numa obra somos levados a refletir, junto com o narrador, sobre a própria escritura da linguagem literária, estamos em plena atividade metalinguística. A partir desse recurso passamos da posição de leitor passivo para a de leitor incluso, ou seja, aquele com o qual o narrador estabelece diálogos sobre o seu fazer literário, afastando-se nesses momentos de aspectos exclusivamente do enredo: ‘‘Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela”.

No conto, Rita, esposa de Vilela, consulta uma cartomante para saber o porquê da ausência de visitas de seu amante Camilo, amigo pessoal de Vilela. Camilo ri da atitude de Rita, pois ele não acredita em cartomante e superstições em geral. Nota-se aqui que o narrador ressalta o perfil cético, racional e prático do personagem Camilo em relação “às coisas do além”, quando de suas críticas à inocência de Rita ao acreditar em cartas, cartomantes e destino.

Se, em um primeiro momento, acreditamos ser Camilo mais seguro e menos ingênuo que Rita, no decorrer do conto descobriremos que, ao deparar com uma situação que o fragiliza, causando-lhe medo e insegurança, o antes convicto “homem sério” não só busca amparo e serenidade nas cartas, como acaba por acreditar piamente na fala da cartomante, levando-o a dar importância a outras vozes que permeiam a sua consciência.

O narrador, mesmo apresentando Camilo como homem que desdenha a credulidade de Rita, ao longo do conto lança vários comentários que podem antecipar os acontecimentos. No entanto, tais passagens, por serem muito sutis, talvez passem despercebidas pela maioria dos leitores, mas demonstram o espírito fraco de Camilo.

"Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público.”

“Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos.

Nem experiência, nem intuição.”

A falta de experiência e a negação de sua intuição acabam por traçar-lhe o fim trágico. Após receber o bilhete de Vilela e o ler, Camilo "ouve" a voz do amigo murmurando-lhe no ouvido:

"Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então - o que era ainda pior - eram murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, a nossa casa; preciso falar-te sem demora". Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de ameaça e mistério.

Depois de "ouvir" a voz de Vilela, Camilo vê sua vida como uma tragédia shakespeariana; o medo toma conta dele, que até cogita ir armado à casa de Vilela, pois pensa que ele descobrira tudo a respeito do seu romance com Rita. Apesar de receoso, resolve ir. 

No caminho, eis que, no caminho, Camilo avista a casa  da cartomante e a dúvida entre ir ou não consultá-la é sanada pela "voz" que ouve de sua consciência sussurrando-lhe as palavras do bilhete de Vilela. Ouve até a voz de Hamlet dizendo que "há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia", legitimando, assim sua ida à casa da vidente. Depois de ouvir o que ela diz pode, enfim, enxergar o mundo com outras cores: "Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais."

Como podemos observar, o ingênuo Camilo molda sua consciência e interpreta as palavras dos outros segundo seus próprios interesses, no caso, o de acreditar que o bilhete de Vilela não constituía uma ameaça à sua vida. A mudança de comportamento de Camilo ao longo do conto nada mais é do que a mudança de valores na consciência diante de certos interesses. O desfecho do conto pode ser interpretado não só como uma crítica à crença ingênua na capacidade de prever o futuro, mas também como a necessidade do olhar e da voz dos outros para construirmos nossa consciência, mesmo que interpretemos esse olhar e essa voz conforme nossos interesses.

Adaptado do artigo Moralismo no divã, de Ariadne Olímpio

domingo, 4 de abril de 2021

A Cartomante - Machado de Assis

 

HAMLET observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois.

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

- Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

- A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:

- Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.



Análise de Auto da Índia

A obra de Gil Vicente é a representação de um fato inspirado na vida real e no sentimento comum, registrando as falhas humanas no sentido de fazer uma crítica construtiva ao comportamento de todas as camadas sociais (nobreza, clero e povo). A criação das personagens denuncia e critica, funcionando como arma de combate social. O espectador deveria ver-se na obra e encontrar seus defeitos analisados, para, assim, poder alterar a sua conduta.

Em "O Auto da Índia", Vicente mostra tanto o comportamento imoral da esposa na ausência do marido, como o efeito maléfico que a expansão ultramarina causava na ordem social e moral do país, facilitando a destruição de princípios do ambiente familiar. A Ama é uma mulher hipócrita, devassa, incapaz de controlar suas vontades sexuais durante a viagem do marido, enganando tanto o companheiro, como também os dois amantes, pois o Castelhano não sabe da existência de Lemos e vice-versa. Apesar de seu procedimento inadequado e imoral, tenta transmitir uma imagem de mulher virtuosa. A falsidade é tanta que ela garante ao marido ter rezado para que nada de mau lhe acontecesse, permanecendo os três anos recatadamente, esperando o seu retorno, além de fingir ciúme pelas supostas aventuras do marido, com outras mulheres, na Índia.
A personagem vicentina apresenta atitudes notavelmente opostas às de Penélope, do clássico "Odisseia" de Homero, mulher que aguarda esperançosa e incansavelmente a volta de Ulisses, e mesmo depois de transcorrido bastante tempo, dispensa, inclusive, seus pretendentes e fia seu bordado com verdadeiro recato. Mas a obra "Odisseia" trata-se da narrativa de um feito grandioso, extraordinário, chegando a ser um tanto onírico. O narrador transmite um episódio heroico da história de um povo, e sua intenção é exaltar as qualidades das personagens; portanto, ao contar as aventuras de Ulisses, jamais colocaria em evidência defeitos ou características perversas das personagens, mostrando Penélope como fiel e recatada, e Ulisses, forte e guerreiro.
Pelo fato de retratar e denunciar a sociedade da época, a obra de Gil Vicente expõe diversas situações e comportamentos condenados e censurados pela própria sociedade, como acontece com os romances do Realismo- Naturalismo, que também discorrem a respeito de condições reais, representando problemas existentes. As personagens típicas permitem estabelecer relações críticas entre obra e realidade, porque embora as personagens sejam seres ficcionais e individuais, passam a representar comportamentos e a ter reações típicas de uma determinada realidade, sendo as narrativas ambientadas num tempo contemporâneo ao escritor, tornando a crítica mais próxima e concreta.
Os romances realistas "Madame Bovary", "O Primo Basílio" e "Ana Karenina" retratam a questão do adultério vivido pelas personagens infelizes e entediadas com o casamento aparentemente perfeito. Ema, Luísa e Ana sentem o vazio, a monotonia, a desilusão e a frustração do matrimônio, por isso não conseguem fugir às conquistas e aos encantos de seus respectivos amantes, buscando satisfação na relação extraconjugal.
De acordo com o Determinismo, elaborado por Hipólito Taine, o homem é um produto de leis físicas e sociais; apesar de um ser pensante, ter liberdade de decisões e ser responsável por suas ações, tanto o meio como a situação e o seu instinto biológico podem interferir e contribuir em suas escolhas. A determinação dos atos do indivíduo pertence à força de certas causas, externas e internas. Pensamentos e ações estão relacionados aos impulsos, caracteres e experiências que definem a personalidade.
Com as personagens criadas por Flaubert, Eça de Queirós e Tolstoi, acontece o seguinte: A falta de perspectiva e os anseios por emoções e aventuras associados aos galanteios dos amantes e à ausência dos maridos permitiam as condições necessárias e suficientes para a existência de paixões fora do casamento. As três personagens morrem ao final dos romances. Ema e Ana cometem suicídio, já Luísa fica doente e falece.
Em "O Auto da índia", a Ama vive uma situação semelhante, porém o seu final não é trágico, pois Gil Vicente, mesmo tentando desvendar o que havia de mau na sociedade, preocupado com a correção dos costumes, adotava como lema uma famosa frase de Plauto, dramaturgo latino: "Rindo, corrigem-se os costumes". A punição da Ama acabaria com o efeito cômico, característico da farsa, e o castigo não consertaria o seu erro. Seria importante evitar as condições para que o erro não fosse cometido, já que ela possui personalidade nem um pouco admirável, propiciando a prática do adultério. A ausência do marido cria a situação essencial para que sua leviandade se transforme em infidelidade conjugal.

Fontes:
CIDADE, Hernâni. A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina. 2. Ed. Coimbra, Armênio Amado, 1963.

MOISÉS. Massaud. A Literatura Portuguesa através dos Textos. São Paulo. Cultrix, 1978.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo. Companhia das Letras. 1999.