quinta-feira, 8 de abril de 2021

Análise do conto A cartomante

Machado de Assis, em sua fase realista, volta-se à analise psicológica, fazendo uma dura crítica à sociedade da época a partir do comportamento de determinados personagens de sua ficção. Os contos A cartomante e Causa secreta, ambos publicados em Várias Histórias, em 1886, são exemplos de como os valores na consciência humana podem modificar-se segundo seus interesses. 

Vamos analisar aqui o conto “A cartomante” que pertence à fase madura do autor, apresenta as ideias realistas do momento, somadas ao tom pessimista, à ironia e forte crítica à sociedade de então, características marcantes do autor.

Embora a temática do adultério seja bem clara no texto, em uma leitura mais atenta percebe-se que o conto prioriza a questão da contradição humana, por meio do embate razão X emoção, ceticismo X credulidade.

É uma narrativa curta, mas apresenta quase todas as marcas estilísticas machadianas: a metalinguagem, a intertextualidade, a paródia, o humor cáustico e permanente, a ironia sutil e a personificação.

A partir de uma citação shakespeariana, o autor inicia o conto utilizando o recurso da intertextualidade: ‘‘Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Mas esse recurso configura-se uma armadilha para o leitor, pois, à primeira vista, parece se referir somente à fala ingênua de Rita: “Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo”. 

Essa é a grande jogada do texto: na medida em que a citação de Shakespeare em Hamlet dá o tom da narrativa, pois não só a inicia, como retoma ao texto por duas vezes (na fala de Rita e na memória de Camilo) e justifica o desfecho.

Afinal, quais seriam essas coisas que existem entre o céu e a terra que nem nossa filosofia pode sonhar? A contradição humana? A credulidade no invisível? A racionalidade que cega? As grandes paixões? O inesperado das situações?

Nem Shakespeare ousaria responder…

Quando numa obra somos levados a refletir, junto com o narrador, sobre a própria escritura da linguagem literária, estamos em plena atividade metalinguística. A partir desse recurso passamos da posição de leitor passivo para a de leitor incluso, ou seja, aquele com o qual o narrador estabelece diálogos sobre o seu fazer literário, afastando-se nesses momentos de aspectos exclusivamente do enredo: ‘‘Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela”.

No conto, Rita, esposa de Vilela, consulta uma cartomante para saber o porquê da ausência de visitas de seu amante Camilo, amigo pessoal de Vilela. Camilo ri da atitude de Rita, pois ele não acredita em cartomante e superstições em geral. Nota-se aqui que o narrador ressalta o perfil cético, racional e prático do personagem Camilo em relação “às coisas do além”, quando de suas críticas à inocência de Rita ao acreditar em cartas, cartomantes e destino.

Se, em um primeiro momento, acreditamos ser Camilo mais seguro e menos ingênuo que Rita, no decorrer do conto descobriremos que, ao deparar com uma situação que o fragiliza, causando-lhe medo e insegurança, o antes convicto “homem sério” não só busca amparo e serenidade nas cartas, como acaba por acreditar piamente na fala da cartomante, levando-o a dar importância a outras vozes que permeiam a sua consciência.

O narrador, mesmo apresentando Camilo como homem que desdenha a credulidade de Rita, ao longo do conto lança vários comentários que podem antecipar os acontecimentos. No entanto, tais passagens, por serem muito sutis, talvez passem despercebidas pela maioria dos leitores, mas demonstram o espírito fraco de Camilo.

"Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público.”

“Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos.

Nem experiência, nem intuição.”

A falta de experiência e a negação de sua intuição acabam por traçar-lhe o fim trágico. Após receber o bilhete de Vilela e o ler, Camilo "ouve" a voz do amigo murmurando-lhe no ouvido:

"Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então - o que era ainda pior - eram murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, a nossa casa; preciso falar-te sem demora". Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de ameaça e mistério.

Depois de "ouvir" a voz de Vilela, Camilo vê sua vida como uma tragédia shakespeariana; o medo toma conta dele, que até cogita ir armado à casa de Vilela, pois pensa que ele descobrira tudo a respeito do seu romance com Rita. Apesar de receoso, resolve ir. 

No caminho, eis que, no caminho, Camilo avista a casa  da cartomante e a dúvida entre ir ou não consultá-la é sanada pela "voz" que ouve de sua consciência sussurrando-lhe as palavras do bilhete de Vilela. Ouve até a voz de Hamlet dizendo que "há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia", legitimando, assim sua ida à casa da vidente. Depois de ouvir o que ela diz pode, enfim, enxergar o mundo com outras cores: "Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais."

Como podemos observar, o ingênuo Camilo molda sua consciência e interpreta as palavras dos outros segundo seus próprios interesses, no caso, o de acreditar que o bilhete de Vilela não constituía uma ameaça à sua vida. A mudança de comportamento de Camilo ao longo do conto nada mais é do que a mudança de valores na consciência diante de certos interesses. O desfecho do conto pode ser interpretado não só como uma crítica à crença ingênua na capacidade de prever o futuro, mas também como a necessidade do olhar e da voz dos outros para construirmos nossa consciência, mesmo que interpretemos esse olhar e essa voz conforme nossos interesses.

Adaptado do artigo Moralismo no divã, de Ariadne Olímpio

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