quarta-feira, 26 de maio de 2021

Como conseguir 200 pontos na competência I da redação do Enem

1. COMPETÊNCIA I: domínio da modalidade escrita formal da língua. Avalia a estrutura sintática e a presença de desvios. (200pts) - para alcançar os 200 pontos, observe os seguintes passos:

- Quanto à estrutura sintática, os parágrafos do texto devem ser excelentes (com apenas uma falha) e, no máximo, com dois desvios.

- Além disso, no texto, com estrutura sintática excelente, há uma certa complexidade na construção dos períodos, ou seja, apresenta orações intercaladas, subordinações e até mesmo inversões.

- A estrutura sintática excelente apresenta orações e períodos completos, contribuindo assim para a fluidez da leitura. 

- Os textos com falhas relacionadas à estrutura sintática apresentam períodos incompletos, truncamentos de períodos, justaposição de palavras e/ou orações, excesso, duplicação ou ausência de palavras.

  • Os períodos incompletos apresentam oração que não foi expressa ou foi indevidamente isolada em outro período ou parágrafo.
  • O truncamento de períodos podem ocorrer nos seguintes casos: separam as orações principais das subordinadas; separam duas orações coordenadas ou, ainda, simplesmente, podem  se isolar, em períodos ou frases. Ou seja, há truncamento no período quando há a presença de um ponto final separando duas orações que deveriam constituir um mesmo período.
  • A justaposição de palavras ou orações ocorre quando se coloca uma vírgula no lugar de um ponto final que deveria indicar o fim da frase. Melhor dizendo, a justaposição é caracterizada por construções que deveriam ser independentes, mas foram justapostas, formando longos períodos.
  • Quando se verifica excesso ou ausência de elementos sintáticos, não relacionados a problemas de regência ou de paralelismo (que serão vistos como desvios), deve-se considerar uma falha de estrutura sintática, como por exemplo, a ausência de um termo na oração ou a repetição de um artigo ou pronome.

- Já em relação aos desvios podemos classificá-los como: convenções escritas, desvios gramaticais, desvios de escolha de registro e desvio de escolha vocabular.       

  • Os desvios de convenção de escrita dizem respeito à acentuação, à ortografia, ao uso do hífen, ao emprego das letras  maiúsculas e minúsculas e  à separação silábica (translineação);
  • Os desvios gramaticais dizem respeito à regência, à concordância, à pontuação, ao paralelismo sintático, ao emprego de pronomes e ao emprego da crase;
  • Os desvios de escolha de registro dizem respeito à informalidade/marca de oralidade no texto, visto que em um texto dissertativo-argumentativo, requer a utilização de um registro formal.
  • Os desvios de escolha vocabular são as escolhas lexicais imprecisas, que é quando um determinado vocábulo está sendo empregado em seu sentido incorreto e inadequado ao texto e às ideias apresentadas.
Outro fato importante para atingir as notas mais altas na Competência I é a forma como os parágrafos são construídos, pois NÂO podem ser construídos em períodos únicos. O ideal é fazer o parágrafo-padrão. Esse tipo de parágrafo é organizado de forma a apresentar três partes: introdução, desenvolvimento e conclusão. A introdução é composta por uma ideia-núcleo apresentada em um ou dois períodos; o desenvolvimento trata-se da explicação dessa ideia-núcleo; e, por fim, a conclusão, que aparece raramente, é composta por um breve fechamento da ideia central do parágrafo.
Exemplo:

"É relevante abordar, primeiramente, que as cidades brasileiras foram construídas sobre um viés elitista e segregacionista, de modo que os centros culturais estão, em sua maioria, restritos ao espaço ocupado pelos detentores do poder econômico. Essa dinâmica não foi diferente com a chegada do cinema, já que apenas 17% da população do país frequenta os centros culturais em questão. Nesse sentido, observa-se que a segregação social - evidenciada como uma característica da sociedade brasileira, por Sérgio Buarque de Holanda, no livro "Raízes do Brasil" - se faz presente até os dias atuais, por privar a população das periferias do acesso à cultura e ao lazer que são proporcionados pelo cinema."

Competência II

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Capitu: heroína ou anti-heroína?

Publicado pela primeira vez em 1899, “Dom Casmurro” é uma das grandes obras de Machado de Assis e confirma o olhar certeiro e crítico que o autor estendia sobre toda a sociedade brasileira. Também a temática do ciúme, abordada com brilhantismo nesse livro, provoca polêmicas em torno do caráter de uma das principais personagens femininas da literatura brasileira: Capitu. 

Machado de Assis, autor sutil e de penetração aguda em questões sociais, arma o problema e testa seu leitor. É impressionante como isso vale ainda hoje, mais de um século depois do lançamento do livro. O romance é a história de um homem de posses que ama uma moça pobre e esperta e se casa com ela. Em sua velhice, ele escreve um romance de memórias para compreender melhor a vida. 

Capitu, até a metade do livro, é quem dá as cartas na relação. É inteligente, tem iniciativa, procura articular maneiras de livrá-lo do seminário etc. Trata-se de uma garota humilde, mas avançada e independente, muito diferente da mulher vista como modelo pela sociedade patriarcal do século XIX. Nesse sentido, Capitu representa no livro duas categorias sociais marginalizadas no Brasil oitocentista: os pobres e as mulheres. A personagem acabará por “perturbar” a família abastada, ao casar-se com o homem rico.

Nesse sentido, a questão central do livro não é o adultério, e sim como Machado introduz na literatura brasileira o problema das classes e, ainda, de forma inovadora, a questão da mulher. Dom Casmurro coloca no centro de sua temática a menina que não se deixa comandar e, em virtude disso, perturba a ordem vigente naquele ambiente social estreito e conservador.  

Dom Casmurro” é uma obra narrada em primeira pessoa por um homem já velho e solitário, o sexagenário, ex-seminarista e bacharel em Direito Bento Santiago, que está tentando “atar das duas pontas da vida” (infância e velhice). Bento Santiago era um homem bastante inseguro, mimado e muito ciumento. Tem sua vida, desde o útero, sendo decidida por sua mãe D. Glória, uma viúva, com caracteres conservadores e que, por sua beatice, faz uma promessa de ser o seu único filho padre. O tom do romance, que é construído em flashback, é de uma pessoa desiludida e amargurada, e sua visão dos fatos narradas é totalmente subjetiva e unilateral. Por conta disso, o livro adquire diversas leituras possíveis e permanece-se com a dúvida sobre o adultério de Capitu.

É interessante ver como a recepção ao livro se modificou com o passar do tempo. Quando foi lançado, era visto como o relato inquestionável de uma situação de adultério, do ponto de vista do marido traído. Depois dos anos 1960, quando questões relativas aos direitos da mulher assumiram importância maior em todo o mundo, surgiram interpretações que indicavam outra possibilidade: a de que a narrativa pudesse ser expressão de um ciúme doentio, que cega o narrador e o faz conceber uma situação imaginária de traição.

Nesta última possibilidade de leitura, percebe-se o peso do possível adultério em suas costas. Não se trata apenas de uma questão conjugal entre iguais, mas de uma condenação de classe. Bentinho utiliza o arbítrio da palavra para culpar sua esposa. Mas é ele quem narra os acontecimentos e, por isso, pode manipular os fatos da maneira que melhor lhe convém. Não se sabe até que ponto os fatos relatados correspondem ao que ocorreu, ou são uma interpretação feita pelo personagem, que, além de tudo, escreve que não tem boa memória. 

Bento Santiago narra a história na primeira pessoa, relatando o seu amor por Capitu e o final trágico do seu romance. Apaixonado por Capitu desde a adolescência, casa com ela e têm um filho, Ezequiel, porém sua felicidade é abalada pela morte do melhor amigo, Escobar, com quem começa a desconfiar que a mulher o traía. A semelhança física entre o filho e o antigo companheiro parece ser a prova do adultério. Por isso, ao contar sua história desde a infância, tenta compreender algo mais do que o suposto adultério de sua mulher: ele quer saber se ela sempre foi como ele a via depois do casamento: falsa e dissimulada. 

Enquanto Bentinho narra seus amores, ele (Dom Casmurro) manipula nossas opiniões, pois vai dando pistas de que ela poderia mesmo tê-lo traído e ter tido um filho com o melhor amigo dele, mas, na verdade, essas pistas não são concretas para se ter certeza da traição de Capitu. Fique esperto: é a voz dele, rico e bem-sucedido advogado, que você lê. Capitu não está mais lá no seu "julgamento" para se defender.

Sabemos que o texto narrado em primeira pessoa tem um ponto de vista limitado. Pois, ao leitor é dada somente a versão dos fatos segundo uma só voz, que é a do narrador. Dom Casmurro faz de seu leitor, o seu confidente, ele tenta persuadi-lo, convencê-lo da traição de Capitu e da legalidade dos seus atos delineados e repletos de ciúme. Assim, temos uma narrativa que com sua intenção e lógica de argumentação, porém em primeira pessoa, colocam a legitimidade da narração em discussão. 

Além disso, é importante frisar que a todo momento do livro, ele fala ”se não me falha a memória”, ou seja, suas lembranças podem estar um pouco distorcidas, sem contar que uma das características de Bentinho é seu sentimentalismo. Dois elementos da narrativa corroboram para confirmar essas afirmações: o narrador e o tempo.

O narrador é Bento Santiago, transformado já no velho Dom Casmurro, que significa teimoso, turrão ou carrancudo. O foco narrativo é, portanto, em primeira pessoa e toda a narrativa é uma lembrança do personagem sobre sua vida, desde os tempos de criança, quando ainda era chamado de Bentinho. Porém, trata-se de um narrador problemático: primeiro porque o narrador é um homem emotivamente arrasado e instável; segundo porque ele narra os fatos que não conhece bem, podendo ser tudo fruto de sua imaginação.

Já o tempo da narrativa é psicológico, e não cronológico. Esse recurso é chamado impressionismo, porque o narrador se detém nas experiências que marcaram sua subjetividade. Seria usada pelo escritor francês Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido. A falibilidade da memória surge como fator de complexidade, uma vez que uma lembrança só pode ser acessada de um momento presente. 

Os acontecimentos, então, passam pelo filtro da subjetividade presente. É por isso que a descrição que o narrador faz de Capitu, como uma pessoa volúvel e sensual, deve ser posta em dúvida pelo leitor. O sentimento de ciúme exacerbado de Bento pode ter desvirtuado a figura da personagem. 

O livro permite um verdadeiro estudo de caso de direito, pois temos Dom Casmurro, formado em direito, sendo acusador e juiz de Capitu. Ele é também a única testemunha e você tem somente acesso à versão da história que ele conta, ou seja, somente por meio de seu ponto de vista super ciumento. Bentinho julga Capitu, mas Machado de Assis coloca Bentinho para ser julgado pelo leitor.

Contada pelos olhos de Bento, tem um teor jurídico, sendo que nosso protagonista já era formado em direito na época em que escreveu. Dessa forma, ele usa de artifícios para colocar em pauta sua insegurança e ciúme relacionados a sua amiga de infância, Capitu. Assim, desenvolve desde o início do livro, a pergunta que só iria fazer em sua última página, e na qual ronda os pensamentos de Dom Casmurro.

Bentinho e Capitu cresceram juntos. Já na sua adolescência, Bentinho sempre ficava deslumbrado com as espertezas e a capacidade de dissimulação, segundo ele, que Capitu possuía para lhes tirar de situações embaraçosas. Vale ressaltar, que o narrador carrega nas tintas ao descrever tais ‘espertezas’ da jovem Capitu, com o objetivo de, desde o início da obra, convencer o leitor da capacidade que aquela tinha para mentir e dissimular, e assim, fazer com que este esteja, ao final da obra, convencido do suposto adultério.

Ao longo de toda a narrativa do romance, é recorrente a imagem de Capitu como uma personagem de olhos de cigana, oblíqua e dissimulada, pois esta imagem será o enlace utilizado pelo narrador para o tempo todo, lembrar/ratificar o leitor da sua suspeita, ao final da trama, a sua condenação dada à personagem. Nesse sentido, é que Celidonio (2006:32) afirma: “Essa dissimulação é vista por Bentinho como um fator positivo, mas na perspectiva de D. Casmurro, do homem enganado, é congênita.”  

Percebemos como o processo de construção de Capitu, enquanto agente das mazelas ocorridas na vida de Bentinho, é na realidade um meio do narrador - D. Casmurro - puni-la. Meio que talvez de outra forma não fosse possível, se pensarmos quão inexistente era a presença de personagens masculinas de personalidades fortes no romance. 

Após o casamento, Capitu tornou-se uma mulher reclusa, submissa e é silenciada pelo narrador. Suporta os ciúmes de seu marido até o limite da separação de ambos e sua ida para a Europa com filho, tendo na sua morte, a representação de seu ‘castigo’, e por completo, seu silêncio.  

A esse respeito, Celidonio (2006:48-49) caracteriza a obra machadiana inverossímil, uma vez que a Capitu casada, submissa, em nada parecia com a Capitu da adolescência, questionadora. Se o objetivo de Dom Casmurro é provar que a Capitu não mudou, que “uma estava dentro da outra como a fruta dentro da casca” (OCI: 942), pode-se fazer uma comparação breve entre as duas. A Capitu menina, mesmo numa posição socialmente inferior, satisfaz os quesitos de individuação. Tem clareza nas decisões, o que supõe distância em relação ao sistema de sujeições, obrigações e fusões imaginárias do paternalismo. Aventura-se ao uso da razão, ousa transitar no universo reconhecido, por tradição, como universo masculino, transgredindo os sistemas delimitadores da cultura patriarcal.

Capitu depois de casada continuou da mesma forma como era quando adolescente? Se lembrarmos bem da Capitu menina, como sugere Casmurro, a Capitu esposa é totalmente diferente, perde a curiosidade, a vivacidade, a determinação, não se posiciona frente aos fatos, vai silenciando até que se entrega totalmente às determinações do marido. Logo, não é verossímil que a menina tão determinada tenha se tornado uma mulher calada, submissa, sem nenhuma explicação. A única característica que não teria desaparecido seria a dissimulação, pois esta mesmo casada, durante o enterro de Escobar, tem suas ações descritas como dissimuladas. 

Afinal, Capitu traiu ou não Bentinho? É uma heroína ou uma anti-heroína?

O principal argumento de Dom Casmurro para dizer que Capitu havia lhe traído foi dizer que o filho não era dele, e sim de Escobar, pois ele tinha traços parecidos aos da criança. Mas como Bentinho estava muito desconfiado, ele pode ter criado em sua mente a semelhança de traços entre a criança e Escobar... Cientistas e doutores nomeados dizem que a mente é poderosa e pode criar imagens do que nós acreditamos, mas nem sempre é verdade.

Outro argumento de Casmurro era a afirmação de que, desde a infância, Capitu era dissimulada, diante das maiores saias justas, ela mentia tão bem e agia tão naturalmente, que chegava a ser desconcertante, além de ser muito manipuladora. Porém, esse argumento também se desfaz quando percebemos que depois de casada, Capitu se transforma totalmente, passa a se comportar de forma recatada e submissa.

Ou seja, a resposta não se sabe ao certo, pois em nenhum momento do romance isso fica explícito. Isso porque Machado de Assis conseguiu tecer a história de maneira tão genial, deixando esse mistério “no ar” e produzindo essa dúvida no leitor.

Como o livro é narrado pelo próprio Bentinho, ele só apresenta o seu ponto de vista, sua perspectiva da história. Não é possível afirmar, por meio da investigação das marcas textuais no romance, que Capitu tenha ou não tenha traído Bentinho”, diz Andrea de Barros, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp. E o propósito do livro é justamente transmitir ao leitor a angústia da dúvida.

Mesmo se levarmos a ferro e a fogo a própria narrativa de Bentinho, temos um personagem que envelhece profundamente arrependido,  que se acredita traído – mas que, no fundo, não tem certeza se não era melhor ter simplesmente deixado a história pra lá. 

Dom Casmurro, enfim, é uma viagem pela mente perturbada de Bento, pela forma como o protagonista percebe a realidade. Pode tudo ser uma ilusão? Pode. Seja na vida de Bento, seja na sua. Essa é mensagem de Machado. E é isso que faz de Dom Casmurro uma joia da literatura universal.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Análise do conto A cartomante

Machado de Assis, em sua fase realista, volta-se à analise psicológica, fazendo uma dura crítica à sociedade da época a partir do comportamento de determinados personagens de sua ficção. Os contos A cartomante e Causa secreta, ambos publicados em Várias Histórias, em 1886, são exemplos de como os valores na consciência humana podem modificar-se segundo seus interesses. 

Vamos analisar aqui o conto “A cartomante” que pertence à fase madura do autor, apresenta as ideias realistas do momento, somadas ao tom pessimista, à ironia e forte crítica à sociedade de então, características marcantes do autor.

Embora a temática do adultério seja bem clara no texto, em uma leitura mais atenta percebe-se que o conto prioriza a questão da contradição humana, por meio do embate razão X emoção, ceticismo X credulidade.

É uma narrativa curta, mas apresenta quase todas as marcas estilísticas machadianas: a metalinguagem, a intertextualidade, a paródia, o humor cáustico e permanente, a ironia sutil e a personificação.

A partir de uma citação shakespeariana, o autor inicia o conto utilizando o recurso da intertextualidade: ‘‘Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Mas esse recurso configura-se uma armadilha para o leitor, pois, à primeira vista, parece se referir somente à fala ingênua de Rita: “Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo”. 

Essa é a grande jogada do texto: na medida em que a citação de Shakespeare em Hamlet dá o tom da narrativa, pois não só a inicia, como retoma ao texto por duas vezes (na fala de Rita e na memória de Camilo) e justifica o desfecho.

Afinal, quais seriam essas coisas que existem entre o céu e a terra que nem nossa filosofia pode sonhar? A contradição humana? A credulidade no invisível? A racionalidade que cega? As grandes paixões? O inesperado das situações?

Nem Shakespeare ousaria responder…

Quando numa obra somos levados a refletir, junto com o narrador, sobre a própria escritura da linguagem literária, estamos em plena atividade metalinguística. A partir desse recurso passamos da posição de leitor passivo para a de leitor incluso, ou seja, aquele com o qual o narrador estabelece diálogos sobre o seu fazer literário, afastando-se nesses momentos de aspectos exclusivamente do enredo: ‘‘Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela”.

No conto, Rita, esposa de Vilela, consulta uma cartomante para saber o porquê da ausência de visitas de seu amante Camilo, amigo pessoal de Vilela. Camilo ri da atitude de Rita, pois ele não acredita em cartomante e superstições em geral. Nota-se aqui que o narrador ressalta o perfil cético, racional e prático do personagem Camilo em relação “às coisas do além”, quando de suas críticas à inocência de Rita ao acreditar em cartas, cartomantes e destino.

Se, em um primeiro momento, acreditamos ser Camilo mais seguro e menos ingênuo que Rita, no decorrer do conto descobriremos que, ao deparar com uma situação que o fragiliza, causando-lhe medo e insegurança, o antes convicto “homem sério” não só busca amparo e serenidade nas cartas, como acaba por acreditar piamente na fala da cartomante, levando-o a dar importância a outras vozes que permeiam a sua consciência.

O narrador, mesmo apresentando Camilo como homem que desdenha a credulidade de Rita, ao longo do conto lança vários comentários que podem antecipar os acontecimentos. No entanto, tais passagens, por serem muito sutis, talvez passem despercebidas pela maioria dos leitores, mas demonstram o espírito fraco de Camilo.

"Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público.”

“Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos.

Nem experiência, nem intuição.”

A falta de experiência e a negação de sua intuição acabam por traçar-lhe o fim trágico. Após receber o bilhete de Vilela e o ler, Camilo "ouve" a voz do amigo murmurando-lhe no ouvido:

"Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então - o que era ainda pior - eram murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, a nossa casa; preciso falar-te sem demora". Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de ameaça e mistério.

Depois de "ouvir" a voz de Vilela, Camilo vê sua vida como uma tragédia shakespeariana; o medo toma conta dele, que até cogita ir armado à casa de Vilela, pois pensa que ele descobrira tudo a respeito do seu romance com Rita. Apesar de receoso, resolve ir. 

No caminho, eis que, no caminho, Camilo avista a casa  da cartomante e a dúvida entre ir ou não consultá-la é sanada pela "voz" que ouve de sua consciência sussurrando-lhe as palavras do bilhete de Vilela. Ouve até a voz de Hamlet dizendo que "há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia", legitimando, assim sua ida à casa da vidente. Depois de ouvir o que ela diz pode, enfim, enxergar o mundo com outras cores: "Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais."

Como podemos observar, o ingênuo Camilo molda sua consciência e interpreta as palavras dos outros segundo seus próprios interesses, no caso, o de acreditar que o bilhete de Vilela não constituía uma ameaça à sua vida. A mudança de comportamento de Camilo ao longo do conto nada mais é do que a mudança de valores na consciência diante de certos interesses. O desfecho do conto pode ser interpretado não só como uma crítica à crença ingênua na capacidade de prever o futuro, mas também como a necessidade do olhar e da voz dos outros para construirmos nossa consciência, mesmo que interpretemos esse olhar e essa voz conforme nossos interesses.

Adaptado do artigo Moralismo no divã, de Ariadne Olímpio

domingo, 4 de abril de 2021

A Cartomante - Machado de Assis

 

HAMLET observa a Horácio que há mais causas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

- Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade.

- Errou! interrompeu Camilo, rindo.

- Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...

Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois.

- Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.

- Onde é a casa?

- Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.

Camilo riu outra vez:

- Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.

Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

- O senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: - a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

- Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tomar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.

- Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, - repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, - o que era ainda pior, - eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."

Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

- Anda! agora! empurra! vá! vá!

Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

- Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.

- E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...

- A mim e a ela, explicou vivamente ele.

A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

- As cartas dizem-me...

Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

- A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.

- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

- Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

- Pergunte ao seu coração, respondeu ela.

Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.

- Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...

A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

- Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.

E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer causa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e continuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. s vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:

- Vá, vá, ragazzo inflamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

- Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?

Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.



Análise de Auto da Índia

A obra de Gil Vicente é a representação de um fato inspirado na vida real e no sentimento comum, registrando as falhas humanas no sentido de fazer uma crítica construtiva ao comportamento de todas as camadas sociais (nobreza, clero e povo). A criação das personagens denuncia e critica, funcionando como arma de combate social. O espectador deveria ver-se na obra e encontrar seus defeitos analisados, para, assim, poder alterar a sua conduta.

Em "O Auto da Índia", Vicente mostra tanto o comportamento imoral da esposa na ausência do marido, como o efeito maléfico que a expansão ultramarina causava na ordem social e moral do país, facilitando a destruição de princípios do ambiente familiar. A Ama é uma mulher hipócrita, devassa, incapaz de controlar suas vontades sexuais durante a viagem do marido, enganando tanto o companheiro, como também os dois amantes, pois o Castelhano não sabe da existência de Lemos e vice-versa. Apesar de seu procedimento inadequado e imoral, tenta transmitir uma imagem de mulher virtuosa. A falsidade é tanta que ela garante ao marido ter rezado para que nada de mau lhe acontecesse, permanecendo os três anos recatadamente, esperando o seu retorno, além de fingir ciúme pelas supostas aventuras do marido, com outras mulheres, na Índia.
A personagem vicentina apresenta atitudes notavelmente opostas às de Penélope, do clássico "Odisseia" de Homero, mulher que aguarda esperançosa e incansavelmente a volta de Ulisses, e mesmo depois de transcorrido bastante tempo, dispensa, inclusive, seus pretendentes e fia seu bordado com verdadeiro recato. Mas a obra "Odisseia" trata-se da narrativa de um feito grandioso, extraordinário, chegando a ser um tanto onírico. O narrador transmite um episódio heroico da história de um povo, e sua intenção é exaltar as qualidades das personagens; portanto, ao contar as aventuras de Ulisses, jamais colocaria em evidência defeitos ou características perversas das personagens, mostrando Penélope como fiel e recatada, e Ulisses, forte e guerreiro.
Pelo fato de retratar e denunciar a sociedade da época, a obra de Gil Vicente expõe diversas situações e comportamentos condenados e censurados pela própria sociedade, como acontece com os romances do Realismo- Naturalismo, que também discorrem a respeito de condições reais, representando problemas existentes. As personagens típicas permitem estabelecer relações críticas entre obra e realidade, porque embora as personagens sejam seres ficcionais e individuais, passam a representar comportamentos e a ter reações típicas de uma determinada realidade, sendo as narrativas ambientadas num tempo contemporâneo ao escritor, tornando a crítica mais próxima e concreta.
Os romances realistas "Madame Bovary", "O Primo Basílio" e "Ana Karenina" retratam a questão do adultério vivido pelas personagens infelizes e entediadas com o casamento aparentemente perfeito. Ema, Luísa e Ana sentem o vazio, a monotonia, a desilusão e a frustração do matrimônio, por isso não conseguem fugir às conquistas e aos encantos de seus respectivos amantes, buscando satisfação na relação extraconjugal.
De acordo com o Determinismo, elaborado por Hipólito Taine, o homem é um produto de leis físicas e sociais; apesar de um ser pensante, ter liberdade de decisões e ser responsável por suas ações, tanto o meio como a situação e o seu instinto biológico podem interferir e contribuir em suas escolhas. A determinação dos atos do indivíduo pertence à força de certas causas, externas e internas. Pensamentos e ações estão relacionados aos impulsos, caracteres e experiências que definem a personalidade.
Com as personagens criadas por Flaubert, Eça de Queirós e Tolstoi, acontece o seguinte: A falta de perspectiva e os anseios por emoções e aventuras associados aos galanteios dos amantes e à ausência dos maridos permitiam as condições necessárias e suficientes para a existência de paixões fora do casamento. As três personagens morrem ao final dos romances. Ema e Ana cometem suicídio, já Luísa fica doente e falece.
Em "O Auto da índia", a Ama vive uma situação semelhante, porém o seu final não é trágico, pois Gil Vicente, mesmo tentando desvendar o que havia de mau na sociedade, preocupado com a correção dos costumes, adotava como lema uma famosa frase de Plauto, dramaturgo latino: "Rindo, corrigem-se os costumes". A punição da Ama acabaria com o efeito cômico, característico da farsa, e o castigo não consertaria o seu erro. Seria importante evitar as condições para que o erro não fosse cometido, já que ela possui personalidade nem um pouco admirável, propiciando a prática do adultério. A ausência do marido cria a situação essencial para que sua leviandade se transforme em infidelidade conjugal.

Fontes:
CIDADE, Hernâni. A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina. 2. Ed. Coimbra, Armênio Amado, 1963.

MOISÉS. Massaud. A Literatura Portuguesa através dos Textos. São Paulo. Cultrix, 1978.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo. Companhia das Letras. 1999.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Gil Vicente em Auto da Índia


Há alguns anos fiz a adaptação do texto de Gil Vicente, o Auto da Índia para encenar com meus alunos do Ensino Médio, quando estávamos estudando Humanismo e Gil Vicente. Vejam como ficou:

AUTO DA ÍNDIA (adaptação)

Á farsa seguinte chamam Auto da Índia . Foi fundada sobre que uma mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desaviado e que já não ia; e ela de pesar, está chorando e fala-lhe uma sua criada. Foi feita em Almada, representada à muito católica rainha Dona Lianor. Era de 1509 anos. Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.

Moça:
(chorando) - Jesus! Jesus! O que está acontecendo?
                                 E  porque o amo já vai partir?

Ama: Eu lá vou chorar por isso? Já vai tarde!

Moça: Por minha alma que pensei que a senhora chorava pelo amo!

Ama: Por que eu chorarei por esse demo?
           Até parece que fico triste com isso! (com cinismo)

Moça: Então por que estais tristes?
            Diga-me, pela sua vida!

Ama: Ora, deixe-me! Estão dizendo que ele não vai mais. (triste)

Moça: Quem disse essa mentira?

Ama: Ah, disseram-me que com certeza ele não partirá agora!

Moça: Como, se eles já estão em Restelo? Só se virem a nado!

Ama: Ah, queria tanto que ele fosse embora!

Moça: Não se preocupe, ele já muito vai longe!

Ama: Que o diabo o leve para a índia, pois meu coração está amargurado, parece que vai sair de mim!

Moça: Não fique assim, eu irei saber se é verdade!

Ama: Vá, vá com minha bênção.

(Vai Moça e fica Ama dizendo)

Ama: Rogo por Santo Antonio que nunca mais ele volte aqui!
           Quem não se não enfada
           De um homem desse?

Moça: (vem cantando) - Dê-me um prêmio, Senhora, 
                                        Ele já vai longe, em alto mar! 

Ama: Te dou uma touca de seda.

Moça: Ou, quando ele voltar dê-me do que ele lhe trouxer!

Ama: Nem me lembre desse dia!
           Agora vamos é aproveitar! (alegre)

Moça: (falando ao público, à parte) - Virtuosa está minha Ama!
                                                              Tenho até pena do amo!

Ama: O que tu estás falando aí?

Moça: Ah, nada, falo com esta cama!!! (fala disfarçando)

Ama:  Essa cama, sei ...
            Me dá essa agulha aí (mostrando para o público) Eu não fiarei um fio sequer, ele me              deixou sem nada!

Moça: (falando à parte para o público) - Mentira!!!
            Deixou-lhe para três anos: trigo, azeite, mel e                                                                             panos.

Ama: Que droga tanto falas? Não estou entendendo?

Moça: Ah, estou dizendo que quem fica assim sem nada como a senhora .... coitada, né?

Ama: Ah, ah, ah, ah, ah!
          Estás muito graciosa!
          Quem é moça e formosa não fica chorando a má sorte.
          Se ele foi viajar ...
          Quem vai esperar tanto?
          Que Deus me perdoe, na hora de minha morte.
          Mas envelhecer esperando pelo vento?
          Serei uma imbecil se fizer o contrário!

Castelhano: Paz seja nesta casa!

Ama: Você? Pensei que fosse alguém!

Castelhano: Não sou nada para a senora?

Ama: Bem que ventos foram esses que lhe trouxeram?
           Não me diga que quer ficar aqui?

Castelhano: Vim falar com a senora, pois desde aquele dia morro de saudade!!

Ama: Não me faça rir! Ande vá embora!

Castelhano: Oh, pela luz de todo Portugal,
                      Pielo amore que sinto pela senora, não me mande ir embora. Sei que seu                                  marido já viajou.

Ama: Sim, ele foi antes de ontem.

Castelhano: Que yo diabo o leve!
                      Para minha felicidade, posso gozar com esta alegria!

Ama: (para a moça) -  Vai ver o cachorro que está lambendo as tigelas!

Moça: São os gatos que estão lambendo as tigelas.

Castelhano:  O que há com a senora, falo em alho e a senora vem com bugalhos!

Ama: Se o senhor só fala besteira, falaremos em quê?

Castelhano: Não me faça uma desfeita, senão faço uma asneira
                     A senora pensa que sou o quê?
                     Sou homem e muito homem,
                     Trago no corazon um leon!

Ama: Esta bem, queres passar a noite aqui?
           Ainda está muito cedo; venha mais tarde, então conversaremos.

Castelhano: A que horas posso vir?

Ama: Ás nove horas em ponto.
           Atira uma pedrinha na janela do meu quarto,
           Então lhe abrirei de muito boa vontade:
           pois você é homem de verdade
           não o deixarei na mão.

Castelhano: Sabes o que ganhas com isso?
                      Yo mundo! Yo mundo é todo seu! 
                      Pensa que só tenho essa roupa que vês?
                      Tenho muito mais do que pensas!
                      Beijo suas mãos, senora, com sua licença!

Ama: Vá embora e volte mais tarde!

Moça: Jesus! Como é fanfarrão!
            Vai ver que esse demônio é ladrão. Não se fie nele!

Ama: Ah, já lhe prometi abrir a janela à noite! (fala com cinismo)
          Ah, lembra daquele meu antigo namorado? Ele esteve aqui.

Moça: Quem? Aquele conquistador sombreiro? 
            Ele é safado, não pensa em outra coisa, o coitado, senão em dinheiro!

Ama: Ele não é desse tipo, tu estás enganada!

Moça: Pois sim! Ele está para aparecer aqui de novo!

Lemos: Ô de casa!

Ama:  Quem está aí?

Lemos: Vosso apaixonado, minha senhora!

Ama: Oh, que tamanha mesura!
           Sou rainha, por acaso?

Lemos: Você é minha imperadora!
               Mas como estás?

Ama:  Meus marido foi-se à Índia.

Lemos: A senhora está tão bela!
              O que me pedir eu faço.

Ama: Peço que vá embora!

Lemos: Quem está atirando pedras na janela?

Ama: (disfarçando) -  São meninos que vivem brincando na rua.

Lemos:  Não me diga, minha senhora!!!

Ama: Vá, vá aqui para a cozinha que estão me chamando.

Castelhano:  Abra-me la janela, la senora prometeu abrir!!!

Ama: Fale baixo! Infelizmente, não posso deixá-lo entrar agora,
           Meu irmão está aqui! Disfarce, disfarce!!!

                           (À parte para o público) 

           Ora viste o azarado? Que falta de sorte!!!

Lemos: Com que a senhora está falando?

Ama: Com ninguém (disfarçando). 
          O senhor quer jantar? Eu não tenho nada que lhe dar.

Lemos: Mande a Moça ao mercado comprar tudo o que está faltando.
              Pois dinheiro é que não falta! (começa a cantar alto)

Ama: O senhor não pode cantar mais baixo?

Lemos:  Ora, deixe-me cantar, senhora!

Ama: O que a vizinhança vai dizer, que quando meu marido não está,
           Ponho o senhor para cantar na minha casa!

                     (Ouve uma pedra na janela)

          Vá para esse outro quarto, que já estou ouvindo barulho,
          Tenho tanto medo da  falação do povo!!!

                 (Chega-se à janela e fala baixo)

Ama: Meu irmão ainda está aqui!

Castelhano: Que diabo ele está fazendo la essa hora?
                      Não demora vai amanhecer!

Ama: Venha aqui outro dia!

Castelhano:  Ah, senora, que raiva sinto de vós!
                      Abra-me la janela, pielo amore de Dios!

Ama: Não posso, volte amanhã à noite!

Castelhano: Assossiega, corazon! Dorme, leon!
                     Juro que la próxima vez isto não ocorrerá!
                     Pois vou destruir lo mundo, queimar la casa, depois queimar la cidad!

Ama: Por que tanta jura? Isso é só conversa!

Lemos: O que é isso? O que está acontecendo aí? (fala desconfiado)

Ama: (disfarçando) - Não é nada! Já está para amanhecer, não está na hora de o senhor ir embora? Já namoramos, já nos divertimos, volte outro dia ...

(Lemos se despede e sai)

Moça: (À para público) - Oh, que mesuras tamanhas!
            Quantas artes, quantas manhas, sabe fazer minha ama!
            Um na rua, outro na cama!

Ama: Que falas aí?

Moça:  (disfarçando) -  Nada, estou falando com meus botões que já fazem dois anos que meu amo partiu. Não vai demorar muito o amo há de voltar para casa. 
              Senhora, irei ver se o amo já está chegando! (Sai)

Ama: Mas que graça seria, se meu marido voltasse vivo a Lisboa para minha companhia!
           Isto não pode acontecer, quero mais é que ele morra! 
           Vai, vai comprar o que comer, tens muito o que fazer, não demore!

Moça: Aí, senhora, venho morta! O amo chega hoje aqui!

Ama: Má notícia tu me trazes, sua excomungada torta!

Moça: A embarcação em que ele foi, vem com muita alegria.
            Juro por minha vida, minha senhora, que não falo mentira.

Ama: Que minha mãe me mate se eu der uma prova de alegria com a volta dele.
           Ele não vai ter nada de mim, nem o que comer!

Marido:  Olá!

Ama: (para o público, falando baixo) - Que péssima hora é esta, ele chegou!
           Quem é?

Marido:  Homem de pé!

Ama: (para o público) - Quer fazer graça é?! Sobe, sobe para cima!

Moça: É o nosso amo, como veio rápido!

Ama: Teu amo? Jesus, Jesus!
            Pedes a ele tua recompensa!

Marido: Abraçai-me, minha amada.

Ama: Jesus, como estás negro e tostado!
           Não vos quero, não vos quero!

Marido: Mas eu quero a você, seja minha mulher!

Ama: Moça, o que é que tu estás olhando? 
          Vai depressa fazer logo a comida, enquanto conversamos!
           (disfarçando) - Ora como foi por lá?

Marido: Passei por muitas aventuras!

Ama: (fingindo) - E eu, oh quanto chorei, chorei muito quando a armada foi embora.
           E quando vi que ias mesmo partir, Jesus, eu fiquei doente, três dias não comi nada, minha alma queria sair.

Marido: A cem léguas daqui surgiu uma tormenta que nunca vi igual.

Ama: Isso foi na quarta-feira?

Marido: Sim, e começou de madrugada.

Ama: Pois é, eu fui de madrugada a nossa Senhora d'Oliveira, lhe prometi uma missa, e na quinta-feira fui ao Espírito Santo a outra missa também.
          Chorei tanto que ninguém nunca viu tanto pranto.
           Correste daquela tormenta?

Marido: Durou três dias. Demos a volta pelo mar
               A armada voava que o mar se espedaçava!
               Pelejamos e roubamos, corremos muitos perigos!

Ama: (com cinismo) - Olha só, os três dias, foram as minhas três romarias!
           O senhor lá correndo perigo e eu aqui a esmorecer, fazendo mil promessas, mil choros, mil orações!

Marido: Assim como havia de ser.

Ama: Juro que de tanta saudade nem pão não comia
           Ficava triste a cada dia!
           Carne, então, nunca comi!
           Onde não há marido tudo é tristeza, não há prazer nem alegria!
           E o senhor, lembrava de mim lá?

Marido: E como?

Ama: Duvido! Lá tem tantas índias formosas,
           E eu aqui triste, encerrada nesta casa, por causa de minha honestidade!

Marido: Ah, que nada, lá só há mortes, tantas brigas ...

Ama: Mas voltaste muito rico ...?

Marido:  Se não fosse o capitão, tinha trazido a minha parte: um milhão ...

Ama: Não me faça rir! Sua vida vale mais que qualquer riqueza!
           Louvado seja o Senhor que me trouxeste de volta!
           A armada veio muito carregada?

Marido: Vem tão doce e embandeirada!

Ama: Vamos lá, quero ir ver.

Marido: Se você sente prazer nisso, vamos!

Ama: Sim, sim, pois estou muito aborrecida aqui dentro de casa.

                     (Vão-se a nau e fenece esta farsa)