O Livro O Carro dos Milagres, de Benedicto Wilfred Monteiro (1924-2008) é uma coletânea de narrativas publicada em 1975, durante os Anos de chumbo (Ditadura Militar), de censura à cultura escrita. Premiada pela Academia Paraense de Letras, a presente coletânea contêm relatos de um caboclo que vem da brenha das matas amazônicas contar suas histórias, memórias, culturas e saberes. Das sete narrativas, é importante enfocar aquela que contém o mesmo título do livro: O Carro dos Milagres.
Ainda que inserida num livro de contos, a primeira narrativa – O Carro dos Milagres – enquadra-se na categoria de novela, porque o enredo dela não trata de um único assunto, mas sim de vários e com muitos personagens; além disso, cabe-lhe o patamar de novel pelo fato de ter menor extensão do que o romance.
Todavia, não é interesse trabalhar o aspecto do subgênero narrativo, mas sim tratar do conteúdo e da estrutura narrativa da referida obra.
A novela O Carro dos Milagres apresenta a experiência do caboclo Miguel dos Santos Prazeres (embora esse nome não apareça nesse texto, pode-se dizer que ele é subentendido de acordo com o conjunto da coletânea) no Círio de Nazaré em Belém/PA. Primeiramente, nota-se o diálogo entre dois caboclos (Personagem-narrador e o Compadre) que vieram acompanhar o Círio, sendo que Miguel tem o interesse de pagar uma promessa que a sua mãe fez a Nossa Senhora de Nazaré do Retiro (ou do Desterro) quando o rapaz encontrava-se em situação de perigo com sua canoa nas águas do Marajó. A mãe velha prometera a Santa que se seu filho fosse resguardo do temporal ele haveria de levar um barco a vela de miriti durante a procissão.
O personagem-narrador (Miguel) descreve, de forma maravilhosa, os detalhes da procissão que está assistindo pela primeira vez, volta-se ao passado de suas lembranças para contar suas sagas de canoeiro no Igarapé da Mata do Catauari com o Compadre, um amigo que o acompanha no Círio e numa beberagem com cachaça de Abaeté, enquanto aguardam no nascer do dia a saída do Círio no Largo da Sé (atual Praça Dom Frei Caetano Brandão).
Depois de muitos goles de bebida, os dois caboclos resolvem segui a procissão, sendo que Miguel tinha o objetivo de achar o Carro dos Milagres e depositar a sua promessa (o barco a vela). Miguel avista o Carro, descreve a lenda portuguesa contida na iconografia do Carro (o milagre de Nossa Senhora de Nazaré a Dom Fuas Roupinho no século XII). Mas o caboclo encontra inúmeras dificuldades para pagar sua promessa: primeiro perde o companheiro de cachaça, o compadre; depois esbarra com o barquinho num balão de gás que dispersa a promessa no meio dos romeiros.
Miguel, bêbedo e perdido na multidão, acaba chegando a Basílica-Santuário de Nazaré.
Ali o caboclo fica maravilhado com as impressões artísticas da Igreja e nela se deixa estar até as altas da madrugada. Ao chegar na garagem, Miguel, com uma vela na mão, encontrar o Carro dos Milagres e se detém olhando as promessas contidas na barca. E é exatamente aí a história se complica: O rapaz é surpreendido por beatas que, maliciosamente, o acusam de incendiário e de ladrão. Já raia um novo dia e elas chamam o padre e a polícia para deter o suposto meliante.
O caboclo é levado preso para a delegacia e ali descreve a presença dos detentos de vários lugares do país e do exterior e as minúcias horríveis daquele cárcere. Depois, avista outro Compadre, viciado em soltar balões de gás, que faz procuração por seu filho perdido e possivelmente morto na procissão. Miguel observa e relata o equivoco sobre a morte do filho desse Companheiro, achavam que o filho era um rapaz que morreu na explosão de um compressor de balão que estourou na procissão. Mas, logo é resolvida essa história quando encontra o filho do Companheiro que ficou bebendo quando seu pai lhe ordenara comprar tais balões coloridos, os mesmos que foram descuidados e soltos pelo filho, os mesmo que levaram a promessa do Miguel, o qual desfecha a história prestando depoimento à polícia.
Estrutura da Narrativa
Personagens principais:
Narrador (com o nome subentendido “Miguel dos Santos Prazeres”) – é redondo/complexo/antagônico;
• Compadre “de cachaça” – redondo/complexo;
• Compadre “que perdeu o filho” – linear/plano.
Secundários:
• Mãe velha (genitora do narrador) – linear/ plana;
• Beatas – redondas/complexas;
• Comissário (policial) – linear/plano;
• Comadre (que perdeu o filho) – linear/plana;
• Filho (dos Compadres) – redondo/complexo
Tempo
• Tempo cronológico – dois dias seguidos, desde a madrugada do Círio até à tarde do dia seguinte: “três horas da tarde”;
• Tempo histórico – o milagre de Nossa Senhora de Nazaré a Dom Fuas Roupinho no século XII;
• Tempo psicológico – feed back: lembrança do naufrágio do barco, das sagas pelos igarapés como o compadre “de cachaça”.
Espaço
• Espaço físico: Largo da Sé (atual praça Dom Frei Caetano Brandão), catedral da Sé bairro da Cidade Velha, ruas do cortejo do círio, Largo de Nazaré (atual Praça Santuário), Basílica-Santuário de Nazaré, sacristia e garagem da Basílica, cadeia.
• Espaço psicológico: Baía do Marajó, Igarapé das Matas do Catauari.
Ambientação: Contexto social, histórico, religioso, familiar.
Enredo: Linear e a-linear (intercalado com memórias, feed backs)
Foco-narrativo: Narrador em primeira pessoa
Discurso: Direto e indireto livre
Clímax: Reencontro do filho (dos compadres) embriagado, o qual diziam que estava morto e o mesmo que soltou os balões coloridos que se engataram na promessa do Miguel.
É incrível como este livro constitui-se em pura oralidade impressa!
A narrativa flui a partir de um diálogo entre compadres, em que o narrador é um romeiro que veio ao Círio pagar uma promessa feita à Virgem em favor de seu barco que sofrera um naufrágio.
Para quem ainda não sabe, o carro dos milagres é um dos carros alegóricos que compõem a grande procissão do 2º domingo de outubro em Belém, onde os romeiros e promesseiros depositam seus ex-votos à Virgem de Nazaré: réplicas de casas, de partes do corpo humano em cera ou – como o personagem de Benedicto Monteiro – de embarcações salvas de um naufrágio.
Este carro foi introduzido na procissão em 1805, por determinação de D. Maria I, rainha de Portugal, para lembrar o primeiro milagre de N. Sra. de Nazaré, que salvou Dom Fuas Roupinho de se precipitar num abismo.
A inspiração de Benedicto Monteiro vem desse mote lendário de raízes lusitanas. Assim ele cria, em cenário ímpar de manifestação sócio-religiosa popular, um narrar onde as possibilidades de coexistência entre o lírico, o épico e o dramático induzem o leitor a uma leitura tão contemplativa quanto a dos clássicos da literatura aqui mencionados.
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