terça-feira, 6 de maio de 2014

Análise do poema Ismália, de Alphonsus Guimaraens


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…

E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…

                                   (Alphonsus de Guimaraens)

Análise do poema:
O poema expressa a dualidade entre corpo e alma. Nele está revelada a imagem de todo homem preso ao desejo de unir matéria e espírito, mas frustrado pela consciência da distância intransponível que o separa de seu alvo.
Levada, sutil e delicadamente, por um desvario, Ismália se permite sonhar com o possível encontro de matéria e espírito. Mas, já que ele não é realizável em vida, então é à morte que Ismália se entrega. No entanto, essa entrega está banhada por uma singeleza única: semelhante a um anjo, sua alma sobe embalada por um cântico, enquanto seu corpo repousa na imensidão do oceano
No poema Ismália, entre duas imagens da lua (céu/mar), a personagem enlouquecida alça o voo de seu ´´sonho``, simetricamente, subindo ao céu e descendo ao mar.
O texto situa-se na parte de sua obra que se inclina a buscar algumas sugestões de forma e conteúdo na tradição poética medieval. Os versos são, a propósito, breves e cadenciados. O poeta faz uso da redondilha maior (versos de sete sílabas métricas); forte musicalidade rítmica através das rimas alternadas (abab), agudas (oxítonas) e toantes (apenas sonoras), e de repetições (estrutura paralelística como ´´Viu uma lua no céu / Viu outra lua no mar``).
Toda a simplicidade formal, no entanto, contrasta com a complexidade psíquica que explora: a loucura (o tema loucura, assim como o tema da morte, fazem parte da poesia Simbolista). Nele se narra uma história, a história da loucura de Ismália. Mas em favor da plena realização do texto como poesia surge a ideia de que para os loucos tudo é simples e praticável: até querer a lua. Ismália, então, obcecada pelo mais legítimo e puro dos desejos, parte em demanda de seu objetivo não ligando a mínima para as consequências daí provenientes. Aliás, morrer, para um certo tipo de pessoa, é mesmo alcançar o bem supremo: a um só tempo a lua do céu (com a alma) e a lua do mar (com o corpo).
As antíteses ´´céu`` e ´´mar``, em todas as estrofes do poema, querem marcar bem a oposição ´´alma`` e ´´corpo``, até o final em que a alma (abstrato), junta-se a ´´céu`` (abstrato); e corpo (concreto) junta-se a ´´mar`` (concreto). A linguagem é subjetiva (repare que as próprias reticências reproduzem uma certa imprecisão e sugestão), mas o suicídio de Ismália é uma conclusão objetiva a que chegamos. Isto é comum ao simbolismo: através de uma linguagem francamente subjetiva, chega-se a captar um fundo às vezes bastante objetivo.
O verbo no pretérito marca a passagem racional para o irracional. A partir daí, a fragmentação da alma (esquizofrenia, de squizo ´´dividido`` e frenos, ´´mente``) se encarrega da hesitação adoidada do desejo, que ora pende para a lua, ora para o mar.
Na 2.ª estrofe, percebemos um certo simbolismo bíblico: ´´Banhou-se... `` ( o batismo, cerimônia iniciática; a oração extrema), ´´... subir ao céu`` (ascensão da alma); ´´descer ao mar`` (voltar às origens aquáticas e minerais da vida). O verso ´´No sonho em que se perdeu`` nos informa que Ismália já não tinha mais noção racional da realidade. 
O Simbolismo, como reação ao materialismo científico, procura ser uma arte antirracional e antilógica; daí seu interesse por zonas ocultas da mente humana (o inconsciente e o subconsciente), não conhecidas nem controladas pela razão. Palavras como ´´Enlouqueceu`` e ´´sonhar``, se associam à pesquisa simbolista do subconsciente e à preferência pelo universo espiritual.
A 3.ª estrofe é a mais profunda do poema: o canto ´´desvairado`` em muitas tradições é a manifestação divina da loucura, onde se decide o destino de Ismália (´´perto do céu... longe do mar. ``). Este é o momento medial e apocalíptico do poema. As duas primeiras e as duas últimas estrofes são mais empíricas, mais descritivas. O verso ´´Na torre pôs-se a cantar`` sugere principalmente que Ismália, por considerar-se perto do céu, poderia já estar identificando-se como um anjo.
Ao se atribuir a Ismália a condição de louca, na 4.ª estrofe justificam-se seus desejos ao mesmo tempo absurdos e verdadeiros: o desejo de voar e de abraçar ´´as luas``. De acordo com a visão de mundo dos simbolistas, tal desejo é a libertação do mundo concreto e real; a transcendência; a integração com o cosmos. O corpo é a parte material do ser e , portanto, um empecilho para a transcendência. A razão aprisiona o homem à esfera da lógica e do real. Em contraposição, o subconsciente e o sonho, livres da razão, lançam o homem ao domínio do insólito e da liberdade. Os versos ´´E como um anjo pendeu / As asas para voar`` indicam que Ismália fez movimentos como a intenção de preparar-se para alcançar voo.
A 5.ª estrofe é marcada pela sublimação: o processo da loucura que culmina com a morte, entendida como encontro entre o corpo (matéria) e alma (espírito) como completude. Ao morrer (um suicídio) a alma de Ismália ´´sobe ao céu``, enquanto seu corpo ´´desce ao mar``, com o movimento das ´´asas que Deus lhe deu ``. Ou seja, ela reencontra a unidade perdida, a transcendência, a transfiguração para a dimensão espiritual e metafísica da existência. A alma subiu para atingir a lua verdadeira; o corpo desceu para a ilusão da lua, para o reflexo da lua ( a lua do mundo sensível). O ideal de Ismália foi atingido, afinal, de acordo com o conceito simbolista, por meio da morte Ismália transcende e integra-se ao cosmos.
Considerando que estas análises apenas sugerem possibilidades entre tantas leituras que se façam deste primoroso poema, a questão da intertextualidade entre este e outros textos também pode ser amplamente explorada, e então se tem início ao fantástico e infindável horizonte que se abre no universo literário e que nos permite imaginar, por exemplo, a inadjetivável aproximação da grandiosidade da criação de Alphonsus de Guimaraens com a fascinante obra do genial Fernando Pessoa

2 comentários:

Anônimo disse...

T.

Anônimo disse...

grugrumilo