Quando Ismália
enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
Pôs-se na torre a sonhar…
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se
perdeu,
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
Banhou-se toda em luar…
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar…
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…
Na torre pôs-se a cantar…
Estava perto do céu,
Estava longe do mar…
E como um anjo pendeu
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas para voar…
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar…
As asas que Deus lhe
deu
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
Ruflaram de par em par…
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar…
(Alphonsus
de Guimaraens)
Análise do poema:
O
poema expressa a dualidade entre corpo e alma. Nele está revelada a imagem de
todo homem preso ao desejo de unir matéria e espírito, mas frustrado pela
consciência da distância intransponível que o separa de seu alvo.
Levada,
sutil e delicadamente, por um desvario, Ismália se permite sonhar com o possível
encontro de matéria e espírito. Mas, já que ele não é realizável em vida, então
é à morte que Ismália se entrega. No entanto, essa entrega está banhada por uma
singeleza única: semelhante a um anjo, sua alma sobe embalada por um cântico,
enquanto seu corpo repousa na imensidão do oceano
No
poema Ismália, entre duas imagens da
lua (céu/mar), a personagem enlouquecida alça o voo de seu ´´sonho``,
simetricamente, subindo ao céu e descendo ao mar.
O
texto situa-se na parte de sua obra que se inclina a buscar algumas sugestões
de forma e conteúdo na tradição poética medieval. Os versos são, a propósito,
breves e cadenciados. O poeta faz uso da redondilha
maior (versos de sete sílabas métricas); forte musicalidade rítmica através
das rimas alternadas (abab), agudas
(oxítonas) e toantes (apenas sonoras), e de repetições (estrutura paralelística como ´´Viu uma lua no céu
/ Viu outra lua no mar``).
Toda
a simplicidade formal, no entanto, contrasta com a complexidade psíquica que
explora: a loucura (o tema loucura,
assim como o tema da morte, fazem parte da poesia Simbolista). Nele se narra
uma história, a história da loucura de Ismália. Mas em favor da plena
realização do texto como poesia surge a ideia de que para os loucos tudo é
simples e praticável: até querer a lua. Ismália, então, obcecada pelo mais
legítimo e puro dos desejos, parte em demanda de seu objetivo não ligando a
mínima para as consequências daí provenientes. Aliás, morrer, para um certo
tipo de pessoa, é mesmo alcançar o bem supremo: a um só tempo a lua do céu (com
a alma) e a lua do mar (com o corpo).
As
antíteses ´´céu`` e ´´mar``, em
todas as estrofes do poema, querem marcar bem a oposição ´´alma`` e ´´corpo``,
até o final em que a alma (abstrato), junta-se a ´´céu`` (abstrato); e corpo
(concreto) junta-se a ´´mar`` (concreto). A linguagem é subjetiva (repare que
as próprias reticências reproduzem uma certa imprecisão e sugestão), mas o
suicídio de Ismália é uma conclusão objetiva a que chegamos. Isto é comum ao
simbolismo: através de uma linguagem francamente subjetiva, chega-se a captar
um fundo às vezes bastante objetivo.
O
verbo no pretérito marca a passagem racional
para o irracional. A partir daí, a
fragmentação da alma (esquizofrenia, de squizo ´´dividido`` e frenos,
´´mente``) se encarrega da hesitação adoidada do desejo, que ora pende para a
lua, ora para o mar.
Na
2.ª estrofe, percebemos um certo
simbolismo bíblico: ´´Banhou-se... `` ( o batismo, cerimônia iniciática; a
oração extrema), ´´... subir ao céu`` (ascensão da alma); ´´descer ao mar``
(voltar às origens aquáticas e minerais da vida). O verso ´´No sonho em que se
perdeu`` nos informa que Ismália já não tinha mais noção racional da realidade.
O Simbolismo, como reação ao materialismo científico, procura ser uma arte
antirracional e antilógica; daí seu interesse por zonas ocultas da mente humana
(o inconsciente e o subconsciente), não conhecidas nem controladas pela razão.
Palavras como ´´Enlouqueceu`` e ´´sonhar``, se associam à pesquisa simbolista do
subconsciente e à preferência pelo universo espiritual.
A
3.ª estrofe é a mais profunda do
poema: o canto ´´desvairado`` em muitas tradições é a manifestação divina da
loucura, onde se decide o destino de Ismália (´´perto do céu... longe do mar.
``). Este é o momento medial e apocalíptico do poema. As duas primeiras e as
duas últimas estrofes são mais empíricas, mais descritivas. O verso ´´Na torre
pôs-se a cantar`` sugere principalmente que Ismália, por considerar-se perto do
céu, poderia já estar identificando-se como um anjo.
Ao
se atribuir a Ismália a condição de louca, na 4.ª estrofe justificam-se seus desejos ao mesmo tempo absurdos e
verdadeiros: o desejo de voar e de abraçar ´´as luas``. De acordo com a visão
de mundo dos simbolistas, tal desejo é a libertação do mundo concreto e real; a
transcendência; a integração com o cosmos. O corpo é a parte material do ser e
, portanto, um empecilho para a transcendência. A razão aprisiona o homem à
esfera da lógica e do real. Em contraposição, o subconsciente e o sonho, livres
da razão, lançam o homem ao domínio do insólito e da liberdade. Os versos ´´E
como um anjo pendeu / As asas para voar`` indicam que Ismália fez movimentos
como a intenção de preparar-se para alcançar voo.
A
5.ª estrofe é marcada pela
sublimação: o processo da loucura que culmina com a morte, entendida como
encontro entre o corpo (matéria) e alma (espírito) como completude. Ao morrer
(um suicídio) a alma de Ismália ´´sobe ao céu``, enquanto seu corpo ´´desce ao
mar``, com o movimento das ´´asas que Deus lhe deu ``. Ou seja, ela reencontra
a unidade perdida, a transcendência, a transfiguração para a dimensão
espiritual e metafísica da existência. A alma subiu para atingir a lua
verdadeira; o corpo desceu para a ilusão da lua, para o reflexo da lua ( a lua
do mundo sensível). O ideal de Ismália foi atingido, afinal, de acordo com o
conceito simbolista, por meio da morte Ismália transcende e integra-se ao
cosmos.
Considerando
que estas análises apenas sugerem possibilidades entre tantas leituras que se
façam deste primoroso poema, a questão da intertextualidade entre este e
outros textos também pode ser amplamente explorada, e então se tem início ao
fantástico e infindável horizonte que se abre no universo literário e que nos
permite imaginar, por exemplo, a inadjetivável aproximação da grandiosidade da
criação de Alphonsus de Guimaraens com a fascinante obra do genial Fernando
Pessoa
2 comentários:
T.
grugrumilo
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